Lenine definiu o comunismo como o poder soviético e a electrificação de todo o país. Por outras palavras, o projecto ideológico de construção do comunismo foi complementado pelo projecto tecnocrático de electrificação, sendo este último uma importante fonte de legitimidade para o novo regime.

A União Europeia de hoje está empenhada no seu próprio projecto de electrificação expansiva – a transição energética – que, de forma semelhante, habita um terreno onde a ideologia se encontra com a tecnocracia e sustenta a legitimidade.

No entanto, nos últimos tempos, algo correu muito mal e uma reacção contra a agenda climática e os seus executores tecnocráticos tem vindo a espalhar-se por toda a Europa. A crise energética – longe de catapultar o continente no caminho para um futuro neutro em termos de carbono, como deveria ter feito – expôs o quão disparatado é o objectivo, uma vez que a Europa se tem esforçado por assinar acordos dispendiosos de gás natural e até por reiniciar centrais a carvão. Há anos que os agricultores insatisfeitos com as políticas da UE, que consideram devastadoras para os seus meios de subsistência, têm vindo a queixar-se, mas recentemente os seus protestos atingiram um crescendo e ganharam peso político. Entretanto, os partidos populistas estão a ganhar terreno a cada dia que passa. O nível de vida está a baixar e a indústria está a encerrar ou a deslocar-se para outros locais.

O descontentamento com a burocracia e a regulamentação sufocantes é generalizado. Um inquérito recente realizado junto das pequenas e médias empresas alemãs registou uma enorme mudança de opinião contra a UE. Este facto é particularmente preocupante porque as chamadas Mittelstand alemãs costumavam ser um dos mais fortes pilares de apoio à integração europeia.

O que está a acontecer na Europa é mais profundo do que uma crise política – é aquilo a que se pode chamar uma crise de legitimidade das elites governantes, que pode muito bem ser considerada como um evento metafísico que precede a convulsão política, sendo esta última apenas a confirmação de que tal crise teve lugar. A legitimidade é, evidentemente, um conceito bastante nebuloso, que não pode ser medido de forma objectiva e que oscila radicalmente sobre as épocas.

Ao longo da história, as classes dominantes sempre fizeram várias reivindicações sobre a sua própria legitimidade, sem a qual é impossível uma ordem política estável. Ironicamente, as elites actuais, fundamental e radicalmente ateias, não podem apelar à legitimidade divina, que foi, historicamente, o argumento mais eficaz e mais duradouro para a conservação e justificação do poder. Outros valores que têm legitimado o poder político e executivo são a defesa dos superlativos interesses nacionais, a prossecução das aspirações dos povos, ou a promoção das classes mais desfavorecidas. Mas as actuais oligarquias neo-liberais, globalistas, transhumanistas e alérgicas ao colarinho azul, cuja agenda nada tem a ver com a salvaguarda da identidade e do bem estar das populações que representam, também estão longe de poder assumir essas causas.

Mas ao traçar os contornos da actual crise, é importante estabelecer quais são exatamente as reivindicações apresentadas pela elite tecnocrática da Europa e de que forma se está a tornar cada vez mais difícil acreditar nelas.

Ostensivamente, a elite dirigente da UE apostou na transição ecológica como a sua razão de ser. Afirmam ter o mandato, a visão e o dever da transição ecológica. Reclamam também possuir a competência para a levar a cabo e estabeleceram objectivos claros para medir o seu sucesso.

Os principais objectivos e prazos são bem conhecidos: reduzir as emissões de gases com efeito de estufa em 55% até 2030 e tornarem a Europa neutra para o clima até 2050. Existem muitos outros objectivos secundários. Mas estes alvos em si, que quase certamente se revelarão ilusórios, não são, na verdade, onde a tecnocracia europeia apostou a sua credibilidade, e o fracasso em atingi-los não será a sua ruína. O que está de facto a ser prometido na transição energética é algo adjacente às reduções de carbono e à eliminação progressiva dos combustíveis fósseis. É uma visão de crescimento e prosperidade envolta numa narrativa mais profunda, imbuída de um significado quase religioso, e um caminho tecnocrático para a alcançar. É, em parte, uma promessa de prosperidade e redenção, e, noutra parte igual, uma crença no poder transcendente da classe dirigente para a alcançar.

O Acordo Verde da UE é um programa ambicioso e de grande alcance que pode ser analisado a muitos níveis. Ficará certamente registado como um artefacto cultural da nossa era. O que é subestimado, no entanto, é a medida em que o programa se prendeu a essas mesmas noções de crescimento e prosperidade, embora, evidentemente, com um brilho verde metalizado. No discurso em torno da iniciativa, palavras como “emissões” e “energias renováveis” são intercaladas com ideias sobre uma “sociedade próspera”, uma “economia competitiva” e uma “abundância de empregos”. Aquando do lançamento do Acordo Verde, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, chamou ao programa “a nossa nova estratégia de crescimento – uma estratégia de crescimento que devolve mais do que retira”.

O comunicado de imprensa da Comissão que anunciou o Pacto Ecológico – equivalente a uma declaração de credo – faz uma justaposição surpreendente. As alterações climáticas e a degradação ambiental, dizem-nos, “representam uma ameaça existencial para a Europa e para o mundo”. Não se pode formular uma descrição mais crua de uma crise apocalíptica. Mas a solução, que é formulada no jargão empresarial típico da nossa época, deixa clara a componente onírica dessa visão: “Para superar este desafio, a Europa precisa de uma nova estratégia de crescimento que transforme a União numa economia moderna, eficiente em termos de recursos e competitiva, em que o crescimento económico seja dissociado da utilização dos recursos e em que ninguém nem nenhum lugar seja deixado para trás”. É este o futuro que a classe tecnocrática da Europa prometeu, e será por ele que viverá e morrerá.

Por outras palavras, os objectivos climáticos estabelecidos serão inevitavelmente falhados, mas a perspetiva de os falhar dificilmente ameaça a legitimidade da tecnocracia da UE: Quando muito, a União tem sido bastante transparente quanto a ficar aquém dos objectivos, porque isso apenas significa que os esforços precisam de ser redobrados, os regulamentos precisam de ser mais rigorosos e os recursos dedicados à causa precisam de ser ainda mais massivos. O recente relatório de acompanhamento da Agência Europeia do Ambiente admite prontamente que a maioria dos objectivos ecológicos para 2030 não será atingida.

Mas a história é muito diferente quando a UE não se torna mais moderna, mas sim menos, uma vez que a inovação fica para trás. E, em vez de se tornar mais eficiente em termos de recursos, começa a pagar drasticamente muito mais pelas mesmas fontes de energia não ecológicas e até a regressar ao carvão. Ou quando a economia perde em vez de ganhar competitividade e muitas empresas simplesmente fecham as portas e mudam-se para o estrangeiro. E o que acontece quando a própria Europa fica para trás?

Uma das implicações do facto da transição verde ser essencialmente concebida como uma preservação do sistema económico actual, mas assente numa nova base sustentável, é que todas as regras actuais devem continuar a aplicar-se: as que regem o investimento, a viabilidade económica e o lucro. Por muito que alguns dos que se encontram à margem do movimento climático possam ansiar por implementar um “eco-leninismo” demolidor do sistema, para usar um termo cunhado pelo activista radical Andreas Malm, a narrativa oficial da UE insere-se firmemente no quadro neoliberal.

E isto leva-nos ao próximo grande conceito da transição energética: que não há qualquer compromisso entre investir no verde e ganhar dinheiro e que grande parte da transição verde seria financiada de forma bastante lucrativa pelo sector privado. À medida que o dinheiro fosse sendo canalizado para os projectos ecológicos, pensava-se que essas empresas iriam avançando, deixando as suas congéneres não ecológicas a definhar e sem capital.

E, de facto, tem sido colocada uma forte ênfase na exploração dos grandes bolsos do dinheiro gerido por instituições. De acordo com as estimativas da própria UE, serão necessários cerca de 400 mil milhões de euros por ano entre 2021 e 2030 e 520 a 575 mil milhões de euros por ano nas décadas seguintes, até 2050. Uma vez que a UE não pode disponibilizar nem de perto nem de longe esse montante, a ideia tem sido apoiar-se fortemente no sector privado e financeiro, com os fundos públicos orientados para tornar os projectos rentáveis para os investidores.

Durante algum tempo, parecia que as coisas podiam estar de facto a caminhar no sentido de uma fusão entre a política verde e os lucros capitalistas. Quando a Ford lançou um Mustang e uma pick-up eléctricos, o seu valor de mercado ultrapassou pela primeira vez os 100 mil milhões de dólares. Uma carteira elaborada pelo The Economist, em meados de 2021, que incluía acções susceptíveis de beneficiar da transição energética, duplicou os rendimentos do S&P 500 num período de um ano e meio. Anteriormente no domínio de fundos sustentáveis de nicho, as acções verdes entraram no mercado mais vasto e começaram a receber fluxos de entrada de fundos convencionais. Os investidores começaram inevitavelmente a estabelecer comparações entre a energia limpa de hoje e a tecnologia da viragem do milénio no que respeita ao seu potencial de alteração do mercado.

Entretanto, proliferaram vários veículos de aquisição para fins verdes (SPAC). Os SPAC são uma forma inovadora das empresas mais pequenas entrarem na bolsa sem terem de fazer uma oferta pública inicial, embora estejam indelevelmente associados à era, já desaparecida, das taxas de juro baixas e do capital abundante e barato, em que os investidores procuravam ganhar exposição ao maior número possível de pequenas empresas na esperança de acertar no jackpot da próxima Tesla. Entretanto, empresas totalmente dependentes de subsídios governamentais com tecnologia não comprovada estavam a angariar dinheiro.

Surgiu a sensação de que praticamente qualquer empreendimento bem comercializado e em sintonia com o zeitgeist prevalecente podia angariar capital, e os empreendimentos políticos da moda ainda mais. De facto, a expectativa implícita era a de que, no mundo das taxas de juro baixas, as empresas apoiadas pelas elites ocidentais eram, talvez não apostas seguras, mas pelo menos mais atractivas do que poderiam ser de outra forma.

Infelizmente, este mundo não estava destinado a durar. O aumento da inflação e a subida acentuada das taxas de juro para a combater, em conjunto com a crise energética de 2022, fizeram soprar um vento frio e ameaçador sobre a explosão do investimento verde e revelaram que grande parte dele era uma moda passageira. O índice S&P Global Clean Energy caiu mais de 20% em 2023. Os fundos ESG nos EUA perderam mais de 5 mil milhões de dólares líquidos nos últimos três meses de 2023, enquanto a Europa registou um enorme declínio no ritmo dos fluxos de entrada. O promotor dinamarquês de energia eólica offshore Orsted, um dos queridinhos das renováveis, cancelou dois projetos nos EUA e viu o preço das suas acções cair 75% desde os máximos de 2021. Depois de diminuir durante vários anos, o custo da energia eólica e solar começou a aumentar.

Talvez a variável mais simbólica neste complexo de embustes seja que a Climate Action 100+, a maior iniciativa mundial de envolvimento de investidores no programa de combate às alterações climáticas, viu recentemente uma série de deserções de alto nível. Em apenas alguns dias, a JPMorgan Asset Management, a State Street e a Pimco retiraram-se do programa de investimento, enquanto a BlackRock transferiu a sua adesão para a sede internacional, muito mais pequena, o que constitui uma clara desvalorização.

Foram citadas muitas razões para as mudanças, mas a que a BlackRock atribuiu a sua decisão está provavelmente mais próxima da verdade: o potencial conflito entre o objectivo da Climate Action 100+ de levar as empresas a descarbonizar e o seu próprio dever fiduciário para com os accionistas, de dar prioridade aos retornos. Por outras palavras, a economia verde e ganhar dinheiro não são, afinal, assim tão compatíveis.

O último ano revelou a realidade de que a transição energética não será impulsionada por uma onda de investimento privado. Isso coloca o ónus directamente sobre os decisores políticos, que terão de impor as medidas necessárias, em vez de esperar que o mercado as aplique por si próprio. E, de facto, o que temos visto é que as instituições da UE e os governos europeus têm recorrido a medidas de grande peso executivo para fazer avançar as políticas climáticas, temperadas por concessões esporádicas e relutantes aos agricultores e a outros eleitores. Neste sentido, a tecnocracia da UE cedeu aos seus piores impulsos: a propensão para uma regulamentação e classificação intrincadas e abrangentes que quase parece ser uma reencarnação verde da complexidade alucinante da escolástica medieval tardia, que se propunha codificar e ordenar todos os aspectos do mundo de acordo com a teologia cristã.

E aqui voltamos à questão da legitimidade. A realidade assemelha-se quase ao espelho oposto do que prescreve a “nova estratégia de crescimento” da Comissão Europeia. O continente está a desindustrializar-se e a mergulhar de cabeça num profundo declínio económico, mas a classe dirigente apostou a sua legitimidade exactamente no oposto: uma robusta visão de prosperidade.

O que é revelador é o facto de, em 2023, as emissões de carbono da Alemanha terem diminuído 10% num só ano. Para aqueles que estão convencidos da “ameaça existencial para a Europa e para o mundo” das alterações climáticas, este número deveria ter sido celebrado, independentemente da forma como foi alcançado. Mas como a redução não se deveu a medidas para uma “economia moderna e competitiva”, mas sim ao seu contrário – o encerramento de fábricas – não foi recebida com júbilo, mas sim com embaraço. Não é assim que as reduções de carbono deveriam acontecer e é por isso que a elite governante da Europa está a enfrentar uma crise profunda.

Os regimes cuja legitimidade foi comprometida, mas que, apesar disso, avançam com medidas impopulares e regulamentos intrusivos, entram numa situação muito perigosa. Wolfgang Munchau, um veterano analista europeu, considera que a fase hiperactiva da agenda verde terminará com as eleições europeias de Junho e que uma parte dela poderá mesmo regredir. Talvez seja verdade e, se assim for, seria um compromisso político prudente que poderia evitar uma crise mais aguda. Mas representaria um recuo profundo e não recuperaria a legitimidade perdida.

O Contra considera que Munchau está a ser demasiado optimista. O jogo das elites globalistas é excessivamente arriscado para ser perdido, até porque os seus erros e os seus crimes não se limitam à religião do apocalipse climático. Os intérpretes actuais do poder no Ocidente sabem que a manutenção do status quo é uma questão de sobrevivência, no sentido existencial da palavra. E vão continuar a apostar tudo, até que nada reste de valor. O sucesso, para os dirigentes europeus, tem duas versões: a glória ou as cinzas.

São duas faces da mesma moeda, na economia do Great Reset.