Ao que parece, durante os mil e cem anos de existência da Rússia como Estado, houve inúmeros actos imundos e terríveis! Mas entre esses houve alguma vez um acto tão terrível como este: trair os seus próprios soldados e proclamá-los traidores?
Aleksandr Solzhenitsyn . O Arquipélago Gulag
Durante séculos, a Divina Comédia de Dante Alighieri foi considerada uma das grandes obras da civilização ocidental. Discutindo a justiça, a natureza humana, a alma, a redenção e a derradeira batalha entre o bem e o mal, o poema conta a história da viagem onírica do autor através do Inferno, do Purgatório e do Céu. Durante as suas viagens pelo Inferno, Dante descobre que o seu nono círculo está reservado aos traidores – aqueles que traíram os seus. Este círculo interior não se consome em chamas: é um deserto gelado, desprovido de qualquer coisa que possa assemelhar-se a amor ou compaixão. No centro, Dante encontra o próprio Lúcifer, eternamente a roer os corpos de Judas Iscariotes, Brutus e Cassius: os traidores mais infames da história. Com isto, Dante procura transmitir ao seu leitor que, embora existam muitos males neste mundo (há vários círculos no Inferno), o pior mal reside na traição.
Não podemos deixar de nos lembrar deste deserto gelado quando lemos sobre o grande Inverno do século XX, tal como descrito na obra-prima de Aleksandr Solzhenitsyn, O Arquipélago Gulag. Neste magnífico e aterrador relato, Solzhenitsyn lança luz sobre uma manifestação moderna do nono círculo do Inferno de Dante. Através de pormenores minuciosos, relata a extensão das atrocidades cometidas durante o regime da União Soviética. Ao contrário de alguns dos mais famosos opressores da História, que visavam inimigos externos, o regime soviético virou-se contra o seu próprio povo. Os gulags, vastas redes de campos de trabalhos forçados, não eram apenas prisões, mas um sinal claro de uma ideologia que consumia e exterminava aqueles que pretendia libertar.
O apelo de Solzhenitsyn não é apenas para que os detentores do poder não cometam o mal. É uma advertência contra o perigo das ideologias que obliteram a dissidência, esmagando os povos que, em princípio, foram pensadas para libertar. É um aviso para não nos deixarmos consumir por uma teoria sobre como o mundo deveria ser, quando essa teoria não é compatível com a realidade e a natureza humana. Um alerta sobre o estreito gume que separa a utopia da distopia.
Seria superficial discutir se o nazismo é pior do que o comunismo, ou o contrário, e Solzhenitsyn não o tenta fazer. No entanto, o filósofo e romancista russo chama a atenção para uma diferença importante entre o comportamento dos nazis e dos soviéticos comunistas. Embora ambos tivessem campos de extermínio, os campos nazis destinavam-se a exterminar outras nações – em particular os judeus – enquanto os campos soviéticos se destinavam a exterminar o seu próprio povo. Como resultado do envolvimento de outras nações, o mal do nazismo foi apresentado à cena mundial, ao passo que o mal do comunismo foi considerado, em grande medida, uma questão interna, tornando mais fácil ao mundo fechar os olhos.
Aqui reside uma razão importante, e muitas vezes subestimada, pela qual o comunismo e a ideologia de esquerda não são universalmente rejeitados na mesma medida em que o nazismo e a ideologia de direita o são: as atrocidades da esquerda são normalmente dirigidas à destruição dos seus próprios. Em nenhum outro lugar isto é tão fisicamente evidente como na tomada de controlo soviético dos campos de concentração nazis, apenas para substituir os judeus por russos.
Esta manifestação de traição e extermínio em massa do seu próprio povo não foi apenas um resultado da Revolução Russa. É emblemática das consequências da ideologia de esquerda quando chega ao poder. O mesmo aconteceu durante a Revolução Francesa, a Revolução Chinesa e a Revolução Cubana, para citar apenas três. Tornou-se um facto recorrente que a busca do céu na terra através da convicção ideológica conduz persistentemente, em vez disso, ao inferno na terra.
Na China, a campanha dos “Três Antis” de Mao, por exemplo, procurou erradicar a “actividade contra-revolucionária” sob a forma de corrupção e desvio de fundos, especulação, extravagância e desperdício. A punição para tais crimes era a morte. Por isso, Mao ordenou aos seus capangas que continuassem a matar cidadãos chineses até que pelo menos 10.000 pessoas fossem mortas. Para Mao, matar 10.000 pessoas do seu próprio povo serviria como prova de que os objectivos da campanha tinham sido alcançados. Tão simples como isto. Este é apenas um pequeno exemplo do tipo de atrocidades cometidas em todo o mundo sob a bandeira do que é orgulhosamente apresentado como ideias “progressistas”.
O padrão de traição não é uma mera coincidência, mas a consequência de uma falha fundamental na ideologia de esquerda. Embora almejando ideais utópicos de igualdade e justiça, a implementação de medidas políticas niilistas tende para a opressão, com a liderança a justificar o sacrifício da sua própria tradição, cultura, religião ou mesmo dos seus cidadãos, em quantidades industriais, como necessário para o bem maior. Ao procurarem erradicar os inimigos previstos pelas suas ideologias, estes regimes traem os próprios princípios que afirmam defender. Isto deve-se ao facto destas ideologias procurarem substituir o mundo tal como ele é pelo mundo tal como ele deveria ser. Como resultado, a busca do “progresso” não é impulsionada pelo reconhecimento da realidade, nem pelo respeito pela natureza humana, mas por uma animosidade contra a realidade e a natureza humana.
É bastante claro que grande parte do mundo tirou as lições erradas do derramamento de sangue do século XX. Em vez consciencializarem o perigo da ideologia progressista, as pessoas ficaram a temer o perigo do nacionalismo. A solução para o problema do nacionalismo é então, tragicamente, apresentada como a prossecução da ideologia progressista – a própria base dos horrores que queremos evitar.
Podemos até dizer que os apparatchiks dos tempos que correm leram Orwell ao contrário, não como uma advertência, mas como um manual de normas. O mesmo podemos dizer sobre os tecnocratas de Silicon Valley e a obra de Arthur C. Clark, elevada à sétima arte por Stanley Kubrick: o sistema de inteligência artificial Hal 9000 de 2001, Odisseia no Espaço está a ser adoptado como modelo de como a tecnologia deve evoluir e não como exemplo do que deve ser evitado. Também Aldous Huxley parece hoje desentendido pelas academias e pelas suas extensões laboratoriais, que procuram a todo o custo soluções transhumanas para os problemas da condição humana.
A ironia é que muitas dessas soluções já têm caminho aberto pelos antigos, nas sagrada escrituras e nas monumentais obras filosóficas e literárias que deixaram, pelos clássicos do fim da idade média e do renascimento, e até por alguns dos grandes pensadores do século XX.
Faríamos bem em redescobrir a Divina Comédia de Dante e o Arquipélago Gulag de Solzhenitsyn e em prestar atenção aos seus avisos sobre as consequências de trair os povos que queremos ‘salvar’.
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