Adrian Carton de Wiart retratado porWilliam Orpen . 1919

 

“A guerra é um grande nivelador: mostra o homem como ele realmente é, não como ele gostaria de ser.”
Adrian Carton de Wiart

 

Ícone do império britânico e logótipo da valentia perante o inimigo, Sir Adrian Carton de Wiart foi um herói de guerra zarolho e maneta que lutou em três grandes conflitos ao longo de cinco décadas, sobrevivendo a incontáveis ferimentos, acidentes de automóvel e de avião, campos de prisioneiros de guerra e todo o género de desventuras. A sua história parece saída de um livro de banda desenhada. Acontece que é real. Tão real como o mito que edificou com o seu próprio sangue.

Carton de Wiart serviu na Guerra dos Bóeres, na Primeira e na Segunda Guerra Mundiais. Foi baleado na cara, perdendo o olho esquerdo, e foi também atingido no crânio, na anca, na perna, no tornozelo e na orelha.

Na Primeira Guerra Mundial, foi ferido gravemente em oito ocasiões e mencionado em despachos, por actos heróicos, seis vezes.

Na qualidade de oficial comandante, Carton de Wiart foi visto pelos seus homens a arrancar as cavilhas das granadas com os dentes e a atirá-las com o seu único braço bom durante a Batalha de Somme, tendo pela sua intratável participação nesta contenda recebido a Cruz Vitória.

A sua história serve para nos recordar que nem todos os generais britânicos da 1ª Guerra Mundial eram “generais de castelo”, como aqueles que muitas vezes são satirizados pelos humoristas e condenados pelos historiadores.  De tal forma foi recordista e inenarrável a sua veia heróica que o novelista Evelyn Waugh terá supostamente usado Carton de Wiart como modelo para a criação fictícia do Brigadeiro Ritchie Hook, mas nem mesmo o personagem de Waugh viveu tantas aventuras, alcançou tantas glórias, sofreu tantos padecimentos como a sua contraparte na vida real. Diz-se que Waugh receava que se o brigadeiro ficcional fosse tão intrépido como o real de Wiart, as suas histórias perderiam realismo e credibilidade.

É deveras revelador sobre o carácter de Carton de Wiart que, apesar de ter sido um dos soldados mais castigados pela batalha na história do exército britânico, escreveu na sua autobiografia:

“Francamente, eu gostava da guerra.”

 

Adrian Carton de Wiart em 1904 e 1914, respectivamente.

 

Um belga em Oxford, um inglês na Somalilânida.

O nosso herói nasceu no seio de uma família aristocrática em Bruxelas, a 5 de Maio de 1880. Em 1891, foi enviado para um colégio interno em Inglaterra, tendo estudado Direito em Oxford.

Em 1899, teve a oportunidade de experimentar a guerra pela primeira vez. Abandonando os estudos, parte para a África do Sul para servir como soldado do exército britânico durante a Segunda Guerra dos Bóeres. Como era menor de idade, não era súbdito britânico e não tinha o consentimento do pai, fingiu ter 25 anos e nacionalidade britânica,  alistando-se sob um pseudónimo.

Foi um batismo de fogo que terminou com ferimentos de bala no estômago e na virilha, obrigando-o a regressar a Inglaterra. Embora ansioso por voltar à acção, teve de esperar mais de uma década para regressar à linha da frente.

No início da Primeira Guerra Mundial, em novembro de 1914, Carton de Wiart, agora naturalizado britânico, estava ao serviço do Corpo de Camelos da Somalilândia, combatendo as forças do Estado Dervixe.

Durante um ataque a uma fortaleza inimiga, foi baleado no braço e no rosto, perdendo o olho esquerdo e parte da orelha. Recebeu a Ordem de Serviços Distintos (DSO) pelos seus feitos.

Em 1964, Lord Ismay, que serviu ao lado de Carton de Wiart na Somalilândia, descreveu o incidente:

“Ele não perdeu o passo, mas penso que a bala o irritou, pois a sua linguagem era horrível. Acredito sinceramente que encarou a perda de um olho como uma bênção, pois permitiu-lhe sair da Somalilândia para a Europa, onde ele achava que estava a verdadeira acção.”

Regressou a Inglaterra para recuperar numa casa de repouso em Park Lane. As suas visitas a este retiro tornaram-se um acontecimento tão regular que o seu pijama era guardado para a sua próxima estadia.

Enquanto recuperava destes ferimentos, Carton de Wiart recebeu um olho de vidro. O olho causou-lhe tal desconforto que, alegadamente, o atirou para a rua, quando viajava num táxi e, em vez disso, começou a usar uma pala negra.

Estas contrariedades não o desanimaram nada. Rapidamente concretizou a sua ambição de combater na Frente Ocidental, quando foi enviado para Ypres em maio de 1915.

Durante a Segunda Batalha de Ypres, os alemães lançaram uma barragem de artilharia na qual Carton de Wiart ficou com a mão esquerda despedaçada. De acordo com a sua autobiografia, “Happy Odyssey“, arrancou dois dedos quando o médico se recusou a amputá-los. A mão foi-lhe retirada por um cirurgião no final desse ano.

 

No Cairo em 1943: a sós à esquerda e com o Lord Moutnbatten, à direita

 

Ontem e hoje: o testemunho do Sargento Thomas O’Donnell.

A forma como ultrapassou os ferimentos, os sofrimentos e as incapacidades continua a ser uma inspiração para o Sargento Thomas O’Donnell, que serviu no Afeganistão com o 1º Batalhão da Guarda Escocesa:

“O facto de ele ter suportado todos aqueles ferimentos e ter passado por tantas reabilitações em tantos conflitos e nunca ter desistido é realmente inspirador, especialmente tendo em conta as instalações médicas inferiores que existiam na altura. Não sei como é que ele conseguiu. Soldados como Carton de Wiart são um verdadeiro exemplo para as tropas que servem actualmente. É muito triste que, tendo-se sacrificado tanto, a sua história não seja particularmente conhecida. Penso que, para além de recordar os mortos de guerra, é fundamental lembrar o que soldados feridos como ele passaram em inúmeros conflitos.”

O’Donnell sabe, por experiência própria, o que é para um soldado ter de lutar para recuperar de ferimentos graves. Foi ferido no Afeganistão em 2010, quando a bala de um atirador furtivo o atingiu mesmo acima da rótula esquerda, partindo o joelho em dois. Disseram-lhe que poderia perder a perna e que os seus dias de soldado tinham terminado. Mas o desejo de O’Donnell de levar a sua filha ao altar sem ajuda e de servir novamente no seu batalhão levou-o a desafiar os conselhos médicos e a regressar à linha da frente no Afeganistão em Setembro de 2012. O’Donnell é modesto em relação à sua própria experiência.

“Quero deixar claro que não passei por nada parecido com o que ele passou. Carton de Wiart é como o Robocop”.

Se Carton de Wiart fosse hoje um soldado no activo, seria autorizado a regressar à linha da frente depois de ter perdido um olho e uma mão? O’Donnell diz que ele teria de se submeter a testes rigorosos e a logos períodos de reabilitação antes de ser considerado um regresso à linha da frente.

“O Exército estabeleceu uma série de testes para os soldados feridos que impõem um padrão de exigência que temos de cumprir para podermos fazer o nosso trabalho. Eu e um amigo meu, que tinha perdido uma perna, completámos esses testes e pudemos ser destacados para o Afeganistão após vários anos de reabilitação. Os testes incluíam passar por um tiroteio e marchar uma certa distância com um determinado peso. Gostaria de pensar que se Carton de Wiart ainda pudesse fazer o seu trabalho, eles deixá-lo-iam continuar”.

 

Conjunto de medalhas atribuídas a Adrian Carton de Wiart

 

De volta ao ferro e fogo.

Após um período de recuperação, Carton de Wiart conseguiu mais uma vez convencer uma junta médica de que estava apto para a batalha. Em 1916, assumiu o comando do 8º Batalhão do Regimento de Gloucestershire e, enquanto o comandava no Somme, a sua lenda foi cimentada.

Ele electrizava os seus homens. A pala no olho, a manga vazia e o bigode marcante, combinados com a sua bravura, tornaram-no famoso, com os homens sob o seu comando a descreverem a sua presença como uma ajuda para aliviar o medo antes de se lançarem ao ataque.

Durante os ferozes combates, a aldeia de La Boiselle caiu por várias vezes nas mãos do inimigo. Quando três outros comandantes foram mortos, Carton de Wiart assumiu o comando de todas as unidades que lutavam na aldeia e liderou a partir da frente, impedindo os contra-ataques inimigos.

Recebeu a Cruz Vitória, a mais alta condecoração militar britânica por bravura, pelas suas acções em La Boiselle. No entanto, recusou sequer mencionar a medalha na sua autobiografia, dizendo mais tarde a um amigo que

“tinha sido ganha pelo 8º Glosters, pois todos os homens fizeram tanto como eu.”

A este propósito, o jornal Times publicou a seguinte notícia em 11 de setembro de 1916:

“Pela mais conspícua bravura, frieza e determinação durante operações severas de natureza prolongada. Foi em grande parte devido à sua coragem destemida e ao seu exemplo inspirador que se evitou um grave revés. Ele demonstrou a maior energia e coragem ao forçar o nosso ataque. Depois de três outros comandantes de batalhão terem sofrido baixas, controlou os seus comandos e assegurou que o terreno conquistado fosse mantido a todo o custo. Expôs-se frequentemente na organização das posições e dos abastecimentos, passando sem hesitar por uma barragem de fogo da natureza mais intensa. A sua bravura foi inspiradora para todos.”

 

Fotografado por Cecil Beaton, durante a II Guerra Mundial

 

O homem, pelas suas próprias palavras.

Dado o seu currículo militar, é fácil adivinhar que Carton de Wiart não era homem para refrear o verbo. Dizia e escrevia exactamente o que pensava e, por isso, podemos fundamentar-nos nas suas palavras para o conhecer melhor. E para perceber que a guerra lhe estava no sangue:

“Francamente, eu gostava da guerra. E porque é que as pessoas desejam a paz, quando é guerra é tão divertida?”

“Naquele momento, soube de uma vez por todas que a guerra estava no meu sangue. Se os britânicos não gostassem de mim, eu oferecer-me-ia aos bóeres”

Como qualquer militar de carreira, que combateu nas frentes de guerra, de Wiart desconfiava dos políticos, embora lhes agradecesse a veia conflituosa:

“Os governos podem pensar e dizer o que quiserem, mas a força não pode ser eliminada, e é o único poder real e incontestável. Dizem-nos que a caneta é mais poderosa do que a espada, mas eu sei qual destas armas escolheria”

“Se não fossem os políticos, não teríamos guerras e eu, por exemplo, não teria tido uma vida muito agradável.”

Um soldado experimentado na arte da guerra fica sempre numa posição óptima para avaliar a condição humana. O belga-britânico não é excepção:

“A guerra é um grande nivelador: mostra o homem como ele realmente é, não como ele gostaria de ser, nem como ele gostaria que pensassem que ele é. Mostra-o despido, com a sua grandeza misturada com os seus medos e fraquezas patéticas. E embora tenha tido desilusões, elas foram mais do que anuladas pelas agradáveis surpresas dos pequenos homens que, de repente, se tornaram maiores do que a vida.”

“Tenho um credo, confirmado pela guerra, que é – nunca dar uma segunda oportunidade a um homem. Pode parecer difícil, mas descobri que o homem que nos desilude uma vez, infalivelmente, voltará a fazê-lo.”

Pragmático e incisivo, Carton de Wiart tinha convicções sólidas sobre a melhor forma de fazer a paz:

“Para mim, o momento certo para as negociações é depois de uma vitória, quando, apoiadas pela força, as palavras parecem adquirir um significado que antes não era tão bem compreendido.”

 

De Cadete a Tenente-Coronel

 

Tiros na nuca, quedas no Mediterrâneo, campos de prisioneiros.

De Wiart participou numa série de outras ofensivas durante a guerra, tendo sofrido mais ferimentos. A. Holmes, que serviu como “batman” ou secretário pessoal de Carton de Wiart, contou ao programa do Serviço Doméstico da BBC em 1964, “In Our Time”, como o seu comandante foi particularmente feliz durante outra ofensiva do Somme.

“Transferiram-nos de Ypres e depois voltámos ao Somme, o Bosque do Diabo, e foi aí que o velho levou um tiro na nuca. Mas felizmente não atingiu a espinal medula.”

Alguns historiadores defendem que a bravura de Carton de Wiart por vezes raiou a imprudência e que isso pode ter explicado o facto de ter sido preterido na promoção ao comando de divisão na 1ª Guerra Mundial.

Mas Bowman acredita que houve factores atenuantes.

“Era um soldado corajoso e um líder eficaz de homens. Estava bem qualificado para ocupar o comando de uma divisão, mas muitos outros também o estavam, e o seu hábito de aparecer na linha da frente e de se ferir não era um bom presságio para a sua capacidade de gerir uma divisão. Dadas as comunicações primitivas da época e a quantidade de burocracia envolvida, comandar uma divisão na Primeira Guerra Mundial implicava muito tempo de escritório, o que não parecia ser o seu forte.”

Carton de Wiart viveu na Polónia durante a maior parte do período entre guerras, mas a sua carreira militar ainda não tinha terminado. Quando rebentou a Segunda Guerra Mundial, liderou uma campanha na Noruega em 1940 e esteve brevemente colocado na Irlanda do Norte.

Em abril de 1941, foi enviado para formar uma missão militar britânica na Jugoslávia, mas o seu avião foi abatido sobre o Mediterrâneo. Depois de nadar até à costa, foi capturado pelos italianos. Apesar dos seus 60 anos, fez numerosas tentativas de fuga do campo de prisioneiros de guerra, tendo, numa ocasião, escapado à recaptura durante oito dias – uma proeza e tanto, tendo em conta o seu aspecto distinto e o facto de não saber falar italiano.

 

Na Conferência do Cairo (de pé, à direita), com Franklin Delano Roosevelt, Winston Churchill e Chiang Kai-shek . 1943

 

Finalmente, a paz.

Acabou por ser libertado mais de dois anos depois e foi enviado para a China por Winston Churchill para ser o seu representante pessoal junto do líder nacionalista Chiang Kai-shek, cargo que ocupou até 1946.

Churchill era um firme admirador de Carton de Wiart, descrevendo-o como “um modelo de cavalheirismo e honra” e escrevendo o prefácio da sua autobiografia.

Na reforma, acabou por se estabelecer no condado de Cork, onde passava o seu tempo a pescar. Tendo provado ser indestrutível no campo de batalha, morreu pacificamente em 1963, com 83 anos.

O historiador militar tenente-coronel James Cook, da Artilharia Real, acredita que o seu exemplo continua a ter eco nos dias de hoje.

“Carton de Wiart tinha o hábito de se ferir, mas isso é apenas uma prova da sua convicção de liderar a partir da frente. Inspirava os seus homens com as simples e eternas palavras: “sigam-me”. Estas palavras continuam a ser a marca de um líder verdadeiramente corajoso, quer na Frente Ocidental há cem anos, quer actualmente em operações militares em todo o mundo.”

Homens como Adrian Carton de Wiart já estão descontinuados, na indústria genética da humanidade. Mas é consolador saber que foram parte, muitas vezes decisiva, da História Universal. Porque se os tempos de hoje são essencialmente dominados por homens fracos (muito mais perigosos, na verdade, que os fortes), a roda livre e dialéctica do percurso humano pode levar-nos a mais auspiciosas configurações ontológicas. E nessa altura, o exemplo do homem que se recusava a morrer pode ser de substancial pertinência.