Ao contrário do que a maior parte dos bonanzas da televisão e do cinema nos querem fazer crer, os grandes heróis do faroeste não passavam de bandidos, batoteiros, alcoólicos, psicopatas, trapaceiros, oportunistas, assassinos e artistas de circo. Entre 1820 e 1890, o período mitológico em questão, espalharam-se ao comprido das suas desventuras e muitos deles morreram calçados, submetidos ao mesmo tratamento balístico que frequentemente usavam para impor as suas vontades e ambições. Talvez por isso, a surpreendente fragilidade, que contrastava com a rara coragem ou a proverbial fanfarronice, acabem por ser tocantes. E o fascínio que exerceram e exercem sobre as gerações posteriores talvez decorra afinal da sua vulgaridade, na medida em que nos ensinam que a diferença entre o herói e o homem comum reside apenas na sua capacidade de desafiar a lei e o destino.

Um itinerário em três volumes pelas vidas de 12 personalidades carismáticas desta época lendária.

 

Wyatt Earp: um xerife fora da lei.

“Pela maneira como lidei com a situação em Tombstone, não me arrependo. Se acontecesse novamente, eu faria exactamente o que fiz naquele momento. Se os bandidos e os seus amigos e aliados imaginaram que poderiam intimidar ou exterminar os Earps por um processo de assassinato, e depois esconderem-se atrás de álibis e dos detalhes técnicos da lei, eles simplesmente erraram o palpite. (…) Com as mortes dos McLaurys, de Clanton, de Stillwell, de Florentino Cruz, de Curly Bill e do resto, o crime organizado e politicamente protegido e as depredações no condado de Cochise cessaram.
Wyatt Earp . 1931 . Citado por Stuart Lake em ” Wyatt Earp: Frontier Marshal”

O príncipe dos pistoleiros novecentistas e típico homem de fronteira, Wyatt Berry Stapp Earp (1848-1929), viveu sete vidas, algumas delas muito pouco recomendáveis. Empresário e pistoleiro, segurança de bordeis e jogador profissional, mineiro e político, oficial de justiça e fora da lei, árbitro de boxe e dualista, Earp liquidou impunemente mais almas que qualquer serial killer contemporâneo.

Este intrépido personagem, muito bem acompanhado pela sua belicosa família, comprava juízes, extorquía comerciantes, exercia a bigamia, assaltava diligências, impunha frequentemente a lei da bala e assim subindo na escadaria social, chegou a xerife da mais infame – e também iconográfica – cidade do Oeste americano: Tombstone.

Em 1881 os irmãos Earp e o inseparável Doc Holliday envolveram-se num confronto com um grupo de vaqueiros locais, que desafiavam o autoritarismo do clã naquela região do Arizona. O mítico tiroteio de 30 segundos de duração em O.K. Curral, que teve como resultado a morte dos irmãos McLaury e de Billy Clanton, os 3 líderes dos vaqueiros rebeldes, imortalizou Wyatt, embora na verdade o personagem central deste episódio tenha sido o seu irmão Virgil.

Wyatt Earp sobreviveu aos seus quatro irmãos e morreu com 80 anos, em Los Angeles, vítima de uma infecção urinária.

 

 

 

“Doc” Holliday: dentista, batoteiro, assassino. Por esta ordem.

“Por que raio é que devo obter pela força aquilo que posso conseguir pela batota?”

Personificação do trunfo na manga, grande glória do poker e certeiro atirador de projécteis balísticos, John Henry “Doc” Holliday (1851-1857) enriqueceu a enganar os pobres de espírito que cometiam o erro fatal de se sentarem com ele numa mesa de jogo, e a assassinar os outros, que ousavam ganhar.

“Doc” Holliday nasceu e foi criado na Geórgia. Antes de se tornar jogador profissional e pistoleiro nas horas vagas, foi dentista, com consultório em Atlanta. Tendo contraído tuberculose, decidiu mudar-se para o sudoeste, na esperança de que o clima mais seco aliviasse os seus sintomas.

Holliday era um vagabundo com sede de aventuras. Percebendo que jogar poker era mais lucrativo do que a prática odontológica, optou pela profissionalização e percorreu todo o Oeste selvagem, incluindo os territórios do Texas, Wyoming, Colorado, Novo México e Arizona. Foi no Texas que conheceu Wyatt Earp, e os dois ficaram amigos para a vida depois do dentista lhe ter salvo o escalpe, quando o livrou, encostando o cano do seu colt à tempora de um cowboy distraído, de um sarilho grande em Dodge City.

Competente atirador, Holliday eventualmente seguiria Earp para Tombstone, e lutaria lado a lado com ele no O.K. Curral, mas a tendência para os duelos com armas de fogo não se resume a esse episódio, nem pouco mais ou menos, tendo sido responsável por infligir ferimentos graves num largo conjunto de infelizes que em má hora lhe agrediram a sensibilidade e pela morte a tiro de vários desgraçados que se lhe cruzaram no caminho, entre os quais o soldado Robert Smith, o barista Charles White, o batedor Mike Gordon, o fora-da-lei Johny Ringo e a totalidade dos passageiros de uma diligência que se lembrou de assaltar.

Encarcerado e julgado por várias vezes, absolvido e condenado por outras tantas, invariavelmente escapando a presídios e penas, “Doc” Holliday sucumbiu à tuberculose em liberdade, no Colorado, com apenas 36 anos.

 

 

 

Calamity Jane: uma calamidade, entre a ficção e a realidade. 

“Quanto maior é a arma de um homem, mais pequeno é o seu pirilau.”

Martha Jane Canary (1852-1903), natural  do Missouri, cresceu para ser uma aventureira e performer. Famosa por se vestir, atirar e beber como um homem, Jane foi cozinheira, empregada de mesa, dançarina de saloon, enfermeira e condutora de manadas.

Aspirante a uma vida um pouco mais substantiva, mudou-se para as cidades de fronteira, à procura da fortuna na corrida ao ouro do faroeste. Nessa fase, combateu os índios no Wyoming (ou disse que o fez), foi batedora no Dakota do Sul e prostituta no Nebraska.

Célebre pelo seu desembestado comportamento, carácter dissoluto e opinião fantasista de si própria, rapidamente aprendeu que contar histórias das suas façanhas (reais e, na maior parte dos casos, imaginárias) poderia render-lhe bons dólares. Nesse contexto fanfarrão, Jane fez parte do “Wild West Show” de Buffalo Bill e também participou na Exposição Pan-Americana de 1901, no estado de Nova York.

O rumor de uma relação romântica com Wild Bill Hickok, personalidade que venerava, foi muito provavelmente iniciado por ela, embora a posterior ruína do insustentável aparelho ficcional que edificou a tenha levado ao alcoolismo. Feitas as contas, Calamity Jane não passava de uma maria rapaz com uma imaginação prodigiosa, fraca pontaria e medo do escuro.

Calamity Jane morreu aos 51 anos, de cirrose. A seu pedido, foi enterrada ao lado de Hickock.

 

 

 

 Wild Bill Hickok: a pistola certeira na mão do homem morto.

“Podem deixar-me ir para o inferno à minha maneira?”

Como Calamity Jane, James Butler Hickok, mais conhecido por Wild Bill Hickok (1837-1876), era conhecido por contar histórias bizarras sobre as suas aventuras e desventuras no faroeste, embora neste caso haverá que reconhecer que a ficção não seria necessária. Habilidoso condutor de carroças e diligências, soldado da União, espião, oficial de justiça, xerife, assassino a soldo, batedor, batoteiro e actor, Bill Hickok foi uma das figuras mais populares do folclore novecentista americano, muito graças à sua temível reputação de pistoleiro assertivo, de gatilho fácil.

Na sua carreira de cinzas, Wild Bill Hickok matou David McCanles, Bill Mulvey, Samuel Strawhun, John Kyle, Phill Coe, Mike Williams (este, por acidente), vários desertores, dezenas de soldados confederados e uma boa quantidade de índios. Ainda assim, o morto que lhe granjeou a definitva reputação de exterminador implacável foi Davis Tutt, que Wild Bill enviou desta para melhor em 1865, por causa de um relógio que tinha perdido ao jogo.

O duelo ao sol, na praça central de Springfield, com os dois homens frente a frente, separados por 70 metros, fica para a história do Oeste americano como o primeiro deste género e veio a inspirar uma multitude de episódios semelhantes na vida real e no imaginário fictício. Preso por homicídio, Wild Bill Hickok foi ilibado por um júri dos seus pares, que consideraram a acção do réu justificada por legítima defesa.

Sobrevivendo a tiroteios e batalhas, cercos e emboscadas, ataques de búfalos e de ursos, Hickok acabou por perecer, com 39 anos, à mesa de um jogo de cartas em Deadwood, quando foi baleado pelas costas pelo infame Jack McCall. Diz a lenda que no momento de sua morte segurava dois pares de cartas pretas: um de ases e um de oitos, sequência agora conhecida no Poker como a “Mão do Homem Morto”.

 

 

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Vol. II desta série será publicado a 23 de Março de 2024
Vol. III desta série será publicado a 30 de Março de 2024