De uma maneira geral, aqueles que se mostram dissidentes em relação às narrativas dos poderes instituídos no Ocidente, manifestam orgulho, ou consolação, por terem acordado para a realidade e por conseguirem agora analisar com lucidez a fenomenologia dos seus tempos.
A maior parte destas pessoas tomaram, voluntária ou inadvertidamente, o proverbial “comprimido vermelho”, produto de um meme ironicamente resultante de uma realização hollywoodesca, quando foram sujeitas à tirania sanitária da pandemia.
Sendo certo que foi também por essa altura que eu engoli a rubra pílula, há duas ou três diferenças fundamentais que persistem em deixar-me num certo isolamento, mesmo quando acompanhado por outros clarividentes camaradas.
Passo a explicar e rogo pela paciência da leitora, solicito a tolerância do leitor, porque isto demora.
Se excluirmos os primeiros dez anos de vida de um indivíduo, que são politicamente imateriais, durante quase quatro décadas de consciente cidadania defendi o capitalismo corporativo e os princípios clássicos do liberalismo económico. Defendi os iluministas axiomas da ciência estabelecida. Defendi o império americano como uma força histórica benigna. Defendi o estado de Israel como uma espécie de “lança em África” da civilização ocidental. Defendi furiosamente esse modelo civilizacional.
Por incrível que possa parecer agora, já fui um europeísta convicto. Já avaliei de forma benévola os corretores de Wall Street. Já votei Cavaco Silva. Já fui a manifestações do Freitas do Amaral. Já acusei Vladimir Putin, o meu líder político preferido de agora, de inomináveis vilanias. Já achei que a Christine Lagarde era uma senhora sensata e que o Gordon Brown era um mal menor e que o Durão Barroso era um político de valor e que a Angela Merkel, em última análise, até servia os interesses dos alemães e que personagens deprimentes como o Nuno Melo e o Rui Rio podiam constituir saídas felizes para a mediocridade da gestão pública ou o deficit de decência na governação autárquica, respectivamente.
Cheguei até a nutrir consideração apreciável por figuras sinistras, aqui enumeradas aleatoriamente, como António Carrapatoso, Pacheco Pereira, Lobo Xavier, Boris Jonhson, Gerhard Schröder, John McCain, George W. Bush, Condoleezza Rice, Colin Powell, Dick Cheney, Donald Rumsfeld e, mais recentemente, Giorgia Meloni.
Já fui um entusiasta do Observador, meu Deus.
Já tentei argumentar a favor de invasões do Iraque, retaliações no Afeganistão, intervenções na Líbia, na Síria, na Somália, chacinas na Palestina, tapetes de bombas nos Balcãs.
E assim sendo, que credibilidade têm, de mim para mim, as minhas contrárias opiniões de agora?
E assim sendo, devo – como os meus companheiros de armas contemporâneos – ser vaidoso da inédita claridade?
Não será esta lucidez afinal equívoca – um outro nevoeiro de trevas que espera apenas pela próxima manhã solarenga de uma pandemia inventada para me fazer pensar de outra maneira qualquer?
É aqui que surgem as tais diferenças e a dita solidão que aponto no terceiro parágrafo deste texto e que se explanam na resposta às três ácidas perguntas que acabei de enunciar e que teimo, por imperativo categórico, em fazer a mim mesmo, quotidianamente.
Para já: não atribuo mérito algum ao facto de ter descortinado as verdades que entretanto assaltaram à mão armada a minha consciência política. Pelo contrário. Tenho vergonha de ter levado décadas para discernir o elefante magenta que estava há que tempos sentado no sofá do meu ecossistema ontológico.
Depois, não encontro consolação nenhuma nas melhoras oftalmológicas. A nitidez deste novo entendimento do mundo não traz agradáveis imagens e, para além de infernizar o presente do indicativo, para além de condenar qualquer vestígio de optimismo sobre o futuro, envenena-me completamente o passado. Tudo, ou quase tudo, aquilo que eu julgava saber estava errado e quando de repente percebes que leste mal a realidade durante a maior parte da tua vida, não podes ficar tranquilo sobre a solidez do teu juízo.
Vendo assim o desgraçado redactor atolado até ao pescoço neste pântano de equívocos, ilusões e mentiras, o generoso leitor, a solidária leitora, talvez considerem lançar ao náufrago um salvífico insuflável, ao perguntarem-se: creditando a tua sinceridade, pobre e massacrado escriba, que raio de energia milagrosa é que te faz levantar da cama todos os dias, para enfrentares o que deve ser uma existência interior verdadeiramente angustiante?
Obrigado, gentil leitor, prezada leitora, pela misericórdia do gesto socorrista, porque aqui chegados, o texto fica mais fácil de escrever e não carece sequer de extensão ensaística.
Acontece que, concomitantemente com a porcaria da indigesta e encarnada droga que involuntariamente engoli, e num processo independente de ganho de consciência que transcende qualquer rábula que o Keanu Reeves e o Lawrence Fishburne possam interpretar mimeticamente, passei de ateu a agnóstico e de agnóstico a cristão, num hiato de cinco ou seis anos.
E essa verdade, a verdade sobre todas verdades, que é a de Cristo, do seu derradeiro sacrifício e da sua promessa de redenção dos erros da humanidade – e, logo, dos meus – salva-me completamente da incerteza, da insegurança, da maldição de nem sequer ser seguro da minha capacidade de aplicar a razão à fenomenologia da realidade.
Tanto mais que a iluminação dos evangelhos não me trouxe antigas arrogâncias, mas uma inédita humildade. A de saber, mais do que acreditar, que somos parte funcional de um desígnio transcendente. De uma força moral, não materialista, que nos conduz, uma vez que a saibamos aceitar, para o mais tranquilo dos lugares.
Aquele em que nada temes. Nem a vida, nem a morte, nem a ignomínia dos ensandecidos. O sítio em que conheces enfim a paz.
A cidade de Deus.
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