Enquanto estas linhas são escritas, dezenas de milhar de tractores bloqueiam ruas de centros urbanos e artérias fundamentais de vários países na Europa. Em Bruxelas e em Paris, os agricultores chegaram durante a madrugada para serem de pronto cercados pela polícia. A maior parte deles dormiram nas suas cabinas. Alguns montam churrascos ao ar livre enquanto bebem umas cervejas. De forma algo ingénua, fazem declarações indignadas à imprensa corporativa, que os trata como nazis, e ao mesmo tempo que despejam estrume à entrada de edifícios governamentais e apupam os poucos políticos liberais que têm a coragem de comparecer nos seus improvisados comícios, esperam sinceramente que as elites no poder oiçam as suas queixas e aliviem os seus fardos e acreditam convictamente que os protagonistas do populismo institucionalizado façam mais do que utilizá-los como adereços da narrativa dissidente.

A quantidade de equívocos em que mergulham é imensa, mas a sua inocência é tocante. E o poder real que congregam é assustador para muitos dos intérpretes do dirigismo político contemporâneo.

Os protestos dos agricultores tornaram-se de repente uma constante da vida política europeia, com tractores a percorrerem as ruas das cidades nos Países Baixos, Bélgica, Alemanha, França, Polónia e Itália (e até em Portugal, se bem que timidamente), em resposta à pressão exercida sobre os seus meios de subsistência por regulamentações ambientais e outras políticas implementadas de cima para baixo e de acordo com uma agenda que lhes é completamente alienígena. Representam também uma tendência relativamente nova: a do recurso à desobediência civil para confrontar as instituições do Estado. Tradicionalmente, essas tácticas têm sido favorecidas por activistas de esquerda, especialmente grupos ambientalistas como o Extinction Rebellion. Um exemplo raro de um movimento socialmente conservador que utilizou a desobediência civil como táctica principal foi o movimento anti-aborto nos EUA, nos anos 80, que resultou em 70.000 detenções. Ocorreram protestos semelhantes em todo o mundo; em França, foram liderados por Noelia Garcia, uma modelo que se tornou activista, apelidada de “Lipstick Commando” pelas suas acções que bloquearam clínicas de aborto em Paris.

Os protestos dos agricultores não podem ser uniformemente caracterizados como sendo necessariamente de direita; os participantes, ideologicamente diversos, estão apenas unidos por objectivos comuns. No entanto, a imprensa internacional insiste que os protestos dos agricultores são uma expressão da “extrema-direita” ou, no mínimo, um veículo involuntário do populismo (que também é de “extrema-direita”). Os protestos tornaram-se, de facto, inextricavelmente ligados às políticas de direita, porque só alguns conservadores – e de uma maneira geral, todos os populistas – parecem apoiá-los. Os agricultores foram acompanhados nas manifestações da semana passada por conservadores húngaros e holandeses, populistas alemães e espanhóis. No Canadá, o comboio da liberdade liderado por camionistas, no início de 2022, foi universalmente contestado pelos esquerdistas, mas apoiado por muitos deputados conservadores.

Foi indiscutivelmente o Freedom Convoy, no qual centenas de caminhões desceram a Ottawa e montaram acampamento por semanas para protestar contra os draconianos mandatos de vacinação do governo que estavam a destruir a sua actividade, que popularizou o conceito de desobediência civil com recurso a veículos pesados. A repressão do governo de Trudeau contra o Comboio, que incluiu a invocação da Lei de Medidas de Emergência, o congelamento em massa de contas bancárias e o encarceramento dos líderes do movimento, foi uma exibição descarada do poder despótico do Estado. Um juiz federal decidiu recentemente que a utilização da Lei de Emergência por Trudeau era inconstitucional e violava a Carta Canadiana dos Direitos e Liberdades, violando a lei máxima do país para reprimir ilegalmente os cidadãos, mas o governo de Adolfo Trudeau insiste que as suas acções foram justificadas e planeia recorrer da decisão. Vale a pena notar que se os Conservadores fizessem a mesma afirmação, seriam imediatamente acusados de minar o Estado de direito.

O Comboio da Liberdade, os protestos dos agricultores e outras manifestações populistas de confronto semelhante têm mais em comum do que apenas as tácticas. A vontade crescente de recorrer à desobediência civil para fazer frente às políticas governamentais é uma reacção directa ao exercício do autoritarismo de Estado que deixou cair a máscara em resposta à “pandemia” Covid. A redução das liberdades civis de um dia para o outro e a reacção muitas vezes maliciosa dos governos à dissidência foi um ponto de inflexão política e cultural que a maioria dos políticos ainda não começou sequer a compreender, e muito menos a enfrentar. As linhas de ruptura social, já visíveis pelo sucesso crescente dos movimentos populistas em todo o mundo, transformaram-se em desfiladeiros à medida que as pessoas se radicalizavam em resposta à percepção de que os seus governos tinham muito mais poder do que seria suposto, que são orientados por agendas que não têm em vista os seus interesses e que têm um impacto negativo em todos os aspectos das suas vidas.

O trauma colectivo da Covid foi exacerbado pelo fascismo sanitário. De súbito, vivíamos num mundo distópico, saído de uma produção hollywoodesca de segunda categoria, em que as pessoas morriam sozinhas nos hospitais enquanto os enfermeiros encenavam coreografias para as redes sociais. Num instante, rebentaram divórcios em massa, decorrentes dos confinamentos que obrigaram famílias a fecharem-se em apartamentos que não foram pensados para essa experiência existencial; amigos de sempre e familiares chegados afastavam-se por discórdias sobre a natureza da gripe e das medidas tomadas para a aplacar, enquanto draconianos mandatos de vacinação eram sustentados pela massificação mediática do medo e a propagação de um programa de falsidades sobre a eficácia e a segurança das terapias genéticas. A marginalização obscena dos não vacinados, o desemprego, o policiamento das actividades ao ar livre, a repressão sobre o livre arbítrio e o triunfo da censura completaram o quadro dantesco.

Para milhões de pessoas, a resposta do Estado à Covid foi uma revelação. Não fazíamos ideia de que o governo poderia, de um dia para o outro, transformar-se num monstro despótico e confinar-nos às nossas casas, impedir-nos de viajar, de visitar a família, de ir à igreja ou de assistir a funerais – mesmo em cemitérios ao ar livre. Não sabíamos que o governo aparentemente possuía os instrumentos para encerrar empresas privadas e mandar prender padres por seguirem a sua consciência e manterem as suas igrejas abertas. Independentemente até da opinião de cada um sobre a Covid, a vacinação ou a motivação das classes dirigentes, a maioria de nós não fazia ideia de que as liberdades poderiam ser retiradas de forma tão abrupta e efectiva, com tão poucos recursos disponíveis para a contestação, por parte do cidadão comum.

Na sequência da pandemia, muitos de nós tornaram-se compreensivelmente alérgicos a qualquer mandato oriundo do Estado. Quem é que, depois da Covid, pode voltar a ouvir os políticos usarem o termo “emergência” sem equacionar as consequências despóticas que surgem a seguir? Agora sabemos o que os políticos podem fazer quando as pessoas, na sua maioria, acreditam genuinamente que um qualquer fenómeno, real ou ficcionado, é uma “emergência”.

Comentadores conservadores foram ridicularizados durante anos por avisarem que os “sistemas de crédito social”, já em uso em regimes totalitários como a China, poderiam um dia ser utilizados no Ocidente. Depois da resposta à Covid, no entanto, as suas especulações tornaram-se bastante credíveis. É por isso que tantas pessoas anteriormente apolíticas estão subitamente tão preocupadas com questões como a introdução de moedas digitais emitidas pelos bancos centrais.

A verdade é que a agenda verde está a ser vendida exactamente da mesma forma como foi a pandemia: como uma emergência. O planeta vai morrer depois de amanhã e temos todos que cair na destituição e deixar de ter filhos e começar a comer insectos e a racionar a pegada de carbono, ao ponto de sermos confinados às distópicas cidades de 15 minutos, para o salvar. Só que agora já há mais gente a desconfiar do carácter factual dessa “emergência”.

 

O Massacre de Machecoul . François Flameng . 1884 . O massacre de 200 republicanos da Vendéia pelos realistas em Machecoul foi o evento inicial da Guerra na Vendéia, um dos eventos mais sangrentos da Revolução Francesa.

 

A crescente centralização do poder por parte das elites políticas e económicas, que procuram cada vez com maior agressividade forçar a sua própria agenda, independentemente da vontade das pessoas comuns  – desde os agricultores que resistem às leis “verdes” que estrangulam o seu modo de vida até aos pais que protestam contra a ideologia LGBT naquilo que acreditavam ser as “suas” escolas, mas que na realidade são instituições estatais – é perigosa tanto para as massas como para aqueles que presidem às super-estruturas globalistas. Porque a corda pode acabar por rebentar para prejuízo de qualquer um dos lados e para proveito de ninguém.

E a hipocrisia constante e flagrante das elites, que colectivamente são responsáveis por uma enorme parte da “pegada de carbono” mundial e não têm qualquer intenção de sofrer as consequências das suas próprias políticas, deixa compreender por que razão subir para um camião ou um tractor e rumar à capital mais próxima pode parecer a única forma de forçar pontos de vista. Este não é um texto sobre os méritos da desobediência civil, que como qualquer forma de protesto, pode ser feita de acordo com os princípios cristãos ou não. Mas quando os governos decidem impor um programa ideológico às pessoas sem o seu consentimento, é inevitável uma reacção. Desde o Freedom Convoy até aos protestos dos agricultores, é sensato especular que só vimos o início desse movimento – que não será o da Direita contra a Esquerda, mas o das pessoas comuns contra os seus líderes aparentemente omnipotentes.

O Contra não tende a considerar plausível a hipótese de uma alteração revolucionária, de carácter violento e abrupto, por parte das massas. Mas, por outro lado, não coloca de parte que a reacção das elites à rejeição popular das suas políticas seja feroz e, a cada momento, mais opressora.

Devemos estar preparados para isso. E resistir a tentações jacobinas. A revolta campesina do século XXI, ou outra de carácter populista que possa emergir, não pode ter como modelo movimentos congéneres de outros séculos, porque nós, no Ocidente, não fomos educados nem estamos mental ou materialmente equipados para essas agruras e essas tragédias e esses sacrifícios. E porque devemos manter uma posição moral consistente com os nossos valores ideológicoe. e espirituais, independentemente do niilismo dos nossos inimigos.

A referência ética para uma revolução decisiva, pacífica e holística é porém, a de sempre. Encontra-se na história que é por quatro vezes contada, no Novo Testamento.