O Lobo de Gubbio . Luc-Olivier Merson . 1877 . Palácio de Belas artes de Lille, França

 

“Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.”
Mateus 22:21

 

Para muitos observadores casuais, a política tornou-se uma força inteiramente secular. Os teólogos políticos, que outrora predominaram na história da filosofia política, são agora vestígios divertidos de uma era passada, ilustrações míticas para os argumentos científicos que se encontram por baixo. No entanto, se nos aventurarmos um pouco mais, é fácil constatar que a religião continua a exercer a sua influência sobre os pensadores políticos de todo o mundo, incluindo no Ocidente. A prevalência desta teopolítica não é algo que deva ser celebrado, uma vez que confunde os deveres da religião e do Estado, prestando um mau serviço a ambos.

Além do mais, estes novos credos, como o culto do apocalipse climático ou a religião woke, são ausentes de transcendência, invertem consagrados e milenares sistemas morais e resultam sobretudo de ódios, frustrações, invejas e patologias psíquicas, sejam elas individuais ou sociais.

Ignorar isto ingenuamente é como permitir, descontraidamente, que se abra a Caixa de Pandora.

Um evangelho da religião do apocalipse climático pode ser descoberto numa série de publicações no Facebook intituladas “Finding Our Religion”, escritas pelo notório fundador da Extinction Rebellion e da Just Stop Oil, Roger Hallam. Nesses posts, ele torna explícito que a ausência de uma religião pública no Ocidente moderno é uma fraqueza que movimentos como o seu podem explorar, e chega ao ponto de descrever a fundação de uma nova religião mundial como a peça central de todo o seu projecto político. O enquadramento mítico da sua planeada revolução climática encontra o cerne no simbolismo de um conflito entre o homem e a natureza, dando credibilidade a exigências políticas de outro modo impossíveis de sustentar, que estão a ser aceites e apoiadas por um número crescente de pessoas. Ao longo da tradição católica da Europa e remontando aos mitos da antiga Mesopotâmia, o poder deste simbolismo provou ser intemporal e a sua exploração deveria fazer soar o alarme na mente conservadora.

 

Francisco e o lobo.

O conto de S. Francisco e o Lobo de Gubbio é um desses exemplos. A história segue Francisco depois de ter sido roubado por saqueadores e acolhido pelos cidadãos de Gubbio para abrigo e conforto. Em Gubbio, Francisco soube da existência de um lobo que aterrorizava a cidade, obrigando as pessoas a fecharem-se atrás de muros e a recolherem-se para não serem devoradas, elas e o seu gado. Sem se deixar perturbar por esta fera aparentemente invulnerável, Francisco reuniu um grupo de habitantes da cidade para se juntar a ele e enfrentar o lobo desarmado. Usando apenas uma poética oração que evoca a bravura no homem, Francisco não só escapa ileso, como consegue convencer o lobo, depois de se benzer, a fazer um contrato com os habitantes da cidade. Ficou assim acordado que as pessoas alimentariam o lobo todos os dias e, em troca, ele deixaria de ameaçar Gubbio. Depois deste milagre, Francisco partiu e o lobo viveu entre o povo durante dois anos até à sua morte, tendo sido enterrado num túmulo que permanece até aos dias de hoje. E por incrível que pareça, os trabalhos arqueológicos no local descobriram um esqueleto de lobo de grandes dimensões, datado aproximadamente do tempo de Francisco.

 

Gilgamesh e Huwawa.

Há semelhanças impressionantes – e diferenças importantes – entre este conto e o mito mesopotâmico de Gilgamesh e Huwawa. Este mito, famoso pela sua antiguidade, segue Gilgamesh, o rei de Ur, e o seu companheiro homem-besta, Enkidu. A dupla aventura-se nas florestas do Líbano para abater um cedro que aí cresce. Usar a madeira de cedro como devoção aos deuses é reconhecido como um sinal de grande bravura, força e piedade, pelo que Gilgamesh espera ser imortalizado. O rei recebe as bênçãos do deus do sol, Shamash, quando parte para além das muralhas da cidade. No entanto, ao chegar à floresta, o grupo de Gilgamesh é magicamente adormecido pelo guardião da floresta Huwawa, uma fera feroz e poderosa.

Uma vez acordado, Enkidu implora a Gilgamesh que abandone a floresta, mas Gilgamesh declara que matará a besta como vingança por ter ousado causar medo no coração do seu companheiro. Gilgamesh e Enkidu continuam a viajar pela floresta, acabando por descobrir Huwawa no seu obscuro e remoto retiro. No entanto, em vez de atacar impulsivamente a fera, Gilgamesh ataca-o com uma língua afiada. Humilha Huwawa pela sua desumanidade e depois oferece-lhe uma saída para a sua miséria através do casamento com a irmã inexistente de Gilgamesh. Tendo assim conquistado a confiança da besta, livrando-a de toda a aura de terror, Gilgamesh ataca e decapita Huwawa, num acesso de violência. Por esta perturbação do equilíbrio cosmológico, os deuses castigam Gilgamesh.

Embora hoje em dia o mundo das bestas, dos reis, dos homens piedosos e dos seus deuses possa parecer uma coisa do passado, as mensagens subjacentes a estas duas histórias são mais pertinentes do que nunca. O pavor existencial do homem metropolitano, rodeado pelos seus confortos artificiais, é simbolizado em ambas as histórias pela sua antítese: a natureza selvagem. Para Gilgamesh, equipado como rei com as ferramentas da guerra e da subjugação, a manipulação e a violência parecem ser o curso de acção adequado. São Francisco, pelo contrário, responde ao deserto como um fiel seguidor de Cristo, procurando a paz e a concórdia entre o mundo dos homens e o mundo da natureza através do poder do seu Deus.

 

Neo-Hittite relief from Tell Halaf showing the defeat of Humbaba. Walters Art Museum, Germany.
A Derrota de Humwawa . Baixo relevo neo-hitita (detalhe) . Walters Art Museum, Alemanha

 

O amor como justificação para a violência.

Hoje, Roger Hallam procura estabelecer um novo mito na consciência pública, no qual os membros das suas várias organizações usam tácticas revolucionárias para construir novos dogmas, aumentar a autoridade sobre as massas e controlar os seus movimentos para as manter, receosas que estão dos terrores apocalíticos do reino natural, mais seguras. A nova religião mundial de Hallam tem como dogma central a perpetuação da raça humana. A definição de “amor” de Hallam fundamenta o seu pensamento:

“O amor é o processo de criação de uma ligação que surge através da ruptura do Mal, através da luta contra o Mal. O verdadeiro amor manifesta-se como perturbação e luta – é militante e intransigente”.

Assim, o amor torna-se, através desta aritmética (que muito se assemelha à retórica utilizada por Charles Mason, o fundador do infame – e assassino – culto californiano), uma forma de violência. Embora este argumento não seja, de forma alguma, exclusivo dos teólogos, pois está enraizado no conceito omnipresente de uma guerra espiritual entre o bem e o mal, é interessante notar que o próprio acto de violência (“luta” e “militância intransigente”) parece ser “a essência do que é ser humano”. Hallam defende os seus pontos de vista dentro de um quadro hegeliano, mas, como ele próprio admite, “Agir é a religião”, pelo que não nos devemos preocupar demasiado com os pormenores.

De facto, tal como pagãos como Juliano, o Apóstata, observavam dialecticamente que os cristãos cuidavam “não só dos seus pobres, mas também dos nossos”,  podemos observar com a mesma profundidade crítica os revolucionários do clima e os seus métodos: manipular as pessoas com propaganda assustadora, exigir confinamentos, procurar assumir o controlo do Estado, impor um regime autoritário em nome da missão sagrada de evitar a catástrofe climática. Perante isto, podemos evocar Edmund Burke e dizer deste falso profeta:

“Quem me dera que ele tivesse dedicado ao disparate todo o tempo que lhe sobrou para a violência.”

O tema do casamento, e portanto do amor, é de grande importância para ambas as histórias que discutimos. Gilgamesh oferece a mão de uma irmã inexistente a Huwawa, reconhecendo o poder do amor como instrumento retórico, mas falseando o contrato que propõe às terríficas forças da natureza. Francisco, por outro lado, “casa” o lobo com o povo de Gubbio, um contrato honesto em que ambas as partes entram de livre vontade e que vê o amor de ambos crescer exponencialmente. De uma forma mais abstracta, as histórias mostram Francisco a vencer a morte através do amor, ao passo que Gilgamesh, confrontando a morte com medo e raiva, se torna seu escravo, decapitando a besta com a qual deveria ter feito um pacto. Os nossos medos existenciais são aliviados pelas graças do verdadeiro amor de Francisco, mas são exacerbados pela violência do falso “amor” de Gilgamesh. A “religião” de Hallam segue os passos de Gilgamesh, desta vez não com o objectivo de decapitar Huwawa, mas de alcançar a liberdade de Ur em relação aos ditames dos deuses.

 

O amor que faz as pazes com a natureza.

Deve ser claro que Hallam é tão religioso como Gilgamesh é um leal servo dos deuses, e que os dois partilham a cegueira de uma visão política do mundo que simplesmente não existe para um homem de fé como São Francisco. Agora, mais do que nunca, estamos casados com a natureza numa intimidade extrema. No entanto, este casamento azedou e tornámo-nos rancorosos e violentos uns com os outros, esquecendo o amor que nos unia. O dever da religião, e não o da política, é consertar este casamento. A política fala a linguagem do poder, do controlo e da violência, uma linguagem que serve o seu objectivo singular de preservar a polis e ordenar o seu caos. A religião fala a linguagem do amor com o objectivo de servir Deus. É apenas através desta linguagem que podemos, como fez São Francisco, trazer a humanidade de volta à harmonia com a natureza. Os fiéis do mundo moderno devem acordar para as armadilhas dos teólogos políticos e dos políticos teológicos, pois as novas “religiões” fundem o que é de César com o que é de Deus. A culpa, o medo e o ódio a nós próprios, juntamente com o amor pela “ruptura e pela luta”, não podem resolver um casamento. A fidelidade, a orientação espiritual e o amor verdadeiro, podem.