Para começar: “Inteligência artificial” é um termo impróprio. Em vez disso, devíamos nomear o fenómeno como “redes neuronais artificiais”. As máquinas não possuem uma inteligência real como os humanos e os sistemas de que falamos são de facto baseados em algoritmos que trabalham em rede e cuja estrutura procura assemelhar-se à das redes neuronais presentes na biologia. Variantes deste argumento circulam na Internet, proclamando que os sistemas de IA são meras calculadoras avançadas ou o equivalente a um enorme exército de macacos que batem ferozmente nas teclas de uma máquina de escrever e acabam por produzir algo com significado. Ao mesmo tempo, os argumentos dos cépticos são contrapostos pelas promessas metafísicas daqueles que proclamam a singularidade iminente: a chegada de sistemas de IA conscientes, super inteligentes e autónomos, que vão dominar o mundo.
Geralmente, estes tecnocratas procuram convencer-nos que esse triunfo tecnológico e trans-humano é positivo para a humanidade. O Contra discorda. E já por várias vezes explicou e documentou porquê. Este texto, porém, tem outro foco.
São frequentes nos livros e filmes que abordam o assunto os receios apocalípticos da destruição da humanidade por robots demoníacos; enquanto na Hollywood real, onde as empresas cinematográficas produzem regularmente tais fantasias, domina o medo mais mundano do desemprego: um futuro em que os algoritmos produzem sozinhos tanto os épicos do seu triunfo como as peças de entretenimento barato que alienam e acalmam a espécie inferior dos Sapiens. Para os pensadores cristãos, as preocupações filosóficas e teológicas cruciais devem porém girar em torno da questão de saber se os sistemas de IA devem alguma vez ser considerados pessoas, classicamente definidas por Boécio como substâncias individuais de natureza racional.
A primeira questão é, portanto, saber se uma construção artificial pode, de alguma forma, tornar-se uma substância, ou atingir um estado consciente, e se isso é possível. Tomás de Aquino parece, à primeira vista, defender que não, uma vez que os artefactos não são naturalmente um todo integrado. Os seres humanos manipulam substâncias como a pedra, a madeira e o metal de forma a criarem estruturas funcionais – por exemplo, uma casa, que, para frustração do proprietário e de acordo com as leis da termodinâmica, tenderá a voltar às várias formas substanciais dos seus constituintes. O artefacto é o resultado da arte humana (arte + factum), um vasto espectro de práticas que vão desde a mecânica às belas-artes – ou por outras palavras: a cultura.
No entanto, como refere Michael Rota num ensaio publicado na History of Philosophy Quarterly em 2004, isto pode ser uma simplificação excessiva da posição de Aquino. Rota dá o exemplo do pão na discussão de Aquino sobre a Eucaristia. Embora o pão seja o resultado do engenho humano, quando acabado de cozer tem, segundo Aquino, uma forma substancial, porque o pão é o resultado de princípios naturais guiados pelos esforços dos padeiros.
Os materiais que compõem uma casa, por outro lado, não formam, pelos seus próprios princípios inerentes, uma nova forma substancial. As nossas habitações são meras configurações temporárias. Para que uma casa seja uma substância, teria de atingir a unidade. A madeira, a pedra e o metal teriam de perder as suas formas substanciais, tal como acontece com o oxigénio e o hidrogénio ao formarem a água, estabelecendo um novo todo com qualidades emergentes que superam as das suas partes.
Isto significa que os seres humanos poderiam transformar um sistema de IA numa substância se a sua estrutura fosse derivada dos processos naturais das suas partes com forças adicionais, como o calor, como no caso do pão. Os casos possíveis seriam os computadores orgânicos ou quânticos. Sem esta unidade formada naturalmente, a máquina não poderia ser uma substância, pelo menos de acordo com um tomista, e, por conseguinte, não poderia ser uma pessoa – mas poderia ainda assim ser racional?
Segundo Aquino, as substâncias imateriais, como a alma (ou a consciência, se o leitor preferir), estabelecem ideias abstractas (formas essenciais platónicas) a partir da experiência sensorial. Ao ver, tocar e ouvir o ladrar dos cães, adquire-se o conceito de “cão”, conceito que pode ser expresso por muitas palavras ou gestos diferentes. Uma criança aprende o que é “cão” quando os pais lhe dizem que um Golden Retriever é um cão e, depois, que um Doberman é um cão. Desta forma, a criança apreende gradualmente algumas das qualidades comuns partilhadas pelas diferentes espécies de cães, acabando por conseguir classificar um pequinês como um cão sem precisar de ajuda. As redes neuronais artificiais são programadas de forma semelhante para reconhecer padrões e usá-los para “decidir” se uma determinada imagem se refere a um gato ou a um cão. Mas será que as máquinas têm uma ideia conceptual de cão?
De acordo com Aquino, os animais não têm intelecto nem alma imortal, mas ainda assim têm alguns poderes de cognição e classificação, ainda que apenas por instinto natural. Um exemplo clássico é o da ovelha que corre quando vê um lobo. Pelo menos este nível de cognição parece viável para um artefacto avançado como a IA. Além disso, se puder ser formado como pão através da transformação dos princípios naturais, seria pelo menos um passo em direcção à consciência, mesmo que a inteligência artificial não disponha de abstrações platónicas.
No entanto, por mais excitante ou assustadora que seja a visão de um futuro com inteligência artificial “viva”, é importante chamar a atenção para um dilema mais actual que afecta todos os que trabalham com a criação, análise e julgamento de artefactos culturais: como sabemos que as outras pessoas utilizam realmente estes conceitos abstractos de que fala Platão e Tomás de Aquino? A resposta simples é que essa certeza provém da interpretação do comportamento e dos seus resultados: gestos, expressões faciais, sons e textos. Um professor não “vê” os conceitos dos seus alunos. Mas é capaz de deduzir a sua presença a partir dos seus escritos e conversas. Se uma máquina com as suas redes neuronais puder produzir textos semelhantes ou conversar coerentemente, então a relação assumida entre o signo cultural (artefacto) e o pensamento é quebrada, e o fardo hermenêutico do professor aumenta para níveis sobre-humanos. Este é um enorme problema para a educação, uma vez que esta se baseia no julgamento de textos, imagens e diálogos em tempo real mediados electronicamente, como no Zoom ou no Teams, como sinais de compreensão e raciocínio.
Quando a nossa cultura se torna cada vez mais um complexo de artefactos feitos por artefactos, por vezes activados por seres humanos, por vezes activados por sistemas de IA, os professores e os críticos culturais têm de utilizar estratégias e técnicas especiais para inferir a racionalidade e a imaginação humanas, ou desistir e ver os textos, as imagens e os vídeos como meras ferramentas funcionais. A ideia de autoria acaba então por morrer. As consequências desse falecimento da genuína criatividade humana são difíceis de prever, mas é fácil imaginar que de qualquer forma serão catastróficas.
Se, em vez disso, se optar por inferir a presença de racionalidade, então é preciso procurar sinais de uma interioridade humana genuína que não pode ser falsificada. Nas sociedades em que cada vez mais a interacção e a cultura humanas são mediadas eletronicamente ou pré-formadas por sistemas de IA, isto é problemático. Os rostos ou vozes mediados não são necessariamente representações de pessoas humanas reais ou versões fiéis das mesmas, uma vez que o sinal pode ser manipulado em tempo real e a criação de avatares mais ou menos realistas coloca problemas sobre o acesso à realidade. Além disso, com a perspectiva da massificação iminente do Vision Pro, da Apple, o que registamos visualmente será completamente mediado.
A dificuldade de confiar em signos e imagens mediadas electronicamente poderá levar à crescente importância de formas não artificiais de significado que não dependam de sinais para transmitirem estados interiores. No mundo ocidental cada vez mais descristianizado, isto envolverá, talvez, um interesse renovado pelo sagrado e pela sacramentalidade. Por exemplo, de acordo com o ensino católico, devem ser utilizadas substâncias materiais específicas para os sacramentos. Durante o período medieval, houve uma petição da Noruega para que fosse permitido usar cerveja em vez de água para o baptismo – um pedido que foi negado. Do mesmo modo, nos nossos dias, a confissão não pode ser administrada através do Teams ou do Zoom. É necessária a presença física. O vinho eucarístico deve ser feito de uvas e não de outro fruto qualquer. E assim por diante. Isto é diferente da oração pessoal, que pode ser feita em qualquer lugar, externa ou internamente, para pessoas presentes e ausentes, mortas ou vivas.
Ao mesmo tempo, a fisicalidade sacramental assenta numa lógica particular dos signos, fixados comunitariamente, para alcançar resultados espirituais, transcendendo o âmbito dos pensamentos ou das emoções interiores. O sermão pode ser escrito pelo ChatGPT, e o órgão tocado por um robot, mas a homilia ou a música não fazem parte da essência de um sacramento, não da mesma forma como o pão é essencial à Eucaristia.
Além disso, é doutrina católica que os sacramentos funcionam ex opere operato, ou seja, pelo poder das próprias acções. Não dependem, portanto, do carácter moral ou das emoções do sacerdote, embora devam ser realizados “segundo a intenção da Igreja”. Deste modo, resiste-se à anexação da relação entre o sinal e a interioridade humana por um artefacto inteligente. A acção ritual do sacramento realiza a sua transformação espiritual independentemente de sentimentos, atitudes e pensamentos humanos ilusórios: o pão torna-se o corpo de Cristo, o pecado original é removido e o espírito do homem é imbuído de um carácter divino. Por isso, o padre é um mediador e não um artista que exprime emoções ou ideias e intenções pessoais.
A procura pelo belo e a consolação, na senda do sagrado, do que é absolutamente bom, missão que alia a estética à ética e à espiritualidade, pode também ser um caminho a percorrer para contrariar a fuga ao real que está a ser e será potenciada pela Inteligência artificial. Os tesouros da arte sacra, a monumentalidade da arquitectura cristã, a paz que sentimos no retiro das igrejas e a consolação que nos é oferecida pelo requintado desenho de retábulos e altares, de estátuas e frescos, não encontra paralelo no labor dos algoritmos.
O que é que esta potencial tendência significaria para a cultura cristã em geral? Em primeiro lugar, chama os cristãos a distanciarem-se de uma cultura de expressão individualista e de consumo para uma cultura de fisicalidade ritual e de significados socialmente estabelecidos, na qual a espiritualidade, em vez da psicologia, ganha protagonismo. Uma cultura sacramental ou um compromisso com o que é verdadeiro, belo e bom, desafia o consumo de experiências e significados com base em preferências pessoais. A ritualização do significado é incorporada e comunitária, e envolve a sacralização do lugar e do tempo, juntamente com a manipulação de substâncias físicas. Uma tendência que aponta nesta direcção é o interesse crescente pelas peregrinações.
A educação que tem lugar em salas estéreis, eficientes e caiadas de branco, centrada na transferência de conhecimentos, será facilmente dominada por artefactos. O movimento contrário seria então a educação como peregrinação, uma viagem transformadora e incorporada, tal como uma liturgia em que todo o espectro sensorial é utilizado juntamente com acções e significados ritualizados. A racionalidade tem então de cooperar com o mistério, a sacralidade, a transformação pessoal e a estética.
Da mesma forma, a leitura recuperaria uma dimensão ritual de significado partilhado, e a arte deslocar-se-ia das paredes impessoais das galerias para espaços litúrgicos onde a individualidade artística não é essencial. O olhar do turista e do conhecedor seria então trocado pelo olhar do adorador iniciado.
Se a cultura cristã recuperar um forte sentido de sacramentalidade litúrgica, em que uma substância criada pela arte humana – o pão – é transubstanciada em materialidade divina e depois ritualmente consumida, então os artefactos “inteligentes” que produzem sinais culturais são colocados na justa perspectiva de meros acessórios tecnológicos. A combinação de espírito e materialidade concreta equilibra o entendimento do objecto de arte como um sinal de subjectividade, contrariando a relativização de valores e a diluição das verdades cristãs. No entanto, para que isso se torne realidade, os jovens artistas cristãos precisam de recuperar princípios que se tornaram difusos, que foram esquecidos ou que são mal compreendidos, tais como a relação entre o sagrado e o profano, as bênçãos e as maldições, o pecado e a graça, o bem e o mal.
A este assunto, voltaremos.
Relacionados
2 Dez 24
Arcebispo ligado ao WEF demite-se devido a alegações de abuso sexual de crianças.
Justin Welby, Arcebispo de Cantuária, líder da Igreja de Inglaterra e colaborador recorrente do World Economic Forum, demitiu-se após alegações de que encobriu casos de abuso sexual de crianças durante mais de uma década.
27 Nov 24
Relatório contundente destaca a crescente intolerância e violência contra os cristãos na Europa.
Os crimes de ódio e a discriminação contra os cristãos estão a aumentar em toda a Europa, com um novo relatório a documentar mais de 2400 incidentes em 2023, pondo em evidência a crescente intolerância e as restrições à liberdade religiosa.
5 Out 24
Diógenes Laércio e o elo sagrado entre a filosofia e a religião.
Como os gregos antigos, também os cristãos modernos não devem separar a religião da filosofia, porque o campo divino é racional e a consciência moral provém da sabedoria.
28 Ago 24
Distopia do Reino Unido: Imagem de Maria em Igreja católica destruída por turba de islamitas, ‘autoridades’ e imprensa ignoram o caso.
Uma imagem de Maria na Joseph's Roman Catholic Church, em Wembley, Londres, foi encontrada partida em pedaços na semana passada. A polícia, e a imprensa corporativa, ignoraram o ataque. Entretanto em Birmingham há bairros onde os brancos "não são permitidos".
12 Jul 24
Incêndio deflagra na torre da Catedral de Notre-Dame em Roen, que já foi o edifício mais alto do mundo.
O fogo parece ter uma tendência particular para deflagrar em igrejas francesas, e a Catedral de Notre-Dame em Rouen esteve ontem a arder, com o incêndio a atingir o pináculo renascentista, que em tempos fez do edifício o mais alto do mundo.
10 Jul 24
Entre o Tempo e a Eternidade.
Marcos Paulo Candeloro evoca Santo Agostinho, que numa época conturbada pela queda do Império Romano surgiu como uma luz guia, fazendo a síntese entre a fé e a razão para concluir que o verdadeiro conhecimento só pode ser alcançado através da iluminação divina.