Obra de insustentável beleza e testemunho da sensibilidade artística e capacidade criadora do género humano, os Concertos de Brandenburgo são uma espécie de apogeu do Barroco. Como muitas das obras de Johann Sebastian Bach, estes seis concertos geraram uma miríade de teses quanto aos seus antecedentes, intenções e significados. A vasta literatura sobre esta obra prodigiosa estende-se desde a análise da simetria formal da música até às conjecturas sobre como a vida de Bach pode ter influenciado a sua estrutura, orquestração e performance. Em termos históricos, os Concertos de Brandenburgo são uma verdadeira quimera, já que foram assembladas, remendadas e embrulhadas como um presente a um potencial mecenas, e não é certo que o próprio Bach os tivesse escolhido como triunfo do seu virtuosismo. O título original, bastante simples, “Seis Concertos Para Vários Instrumentos”, bem como a linguagem auto-reflexiva de Bach na sua dedicação do conjunto a Christian Ludwig, Marquês de Brandenburg-Schwedt, revelam a sua intenção de que esta celebrada obra fosse apresentada sem grandes pretensões, dedução que é difícil de conciliar com a percepção contemporânea dos Concertos de Brandenburgo como obras-primas intemporais.
Na verdade, a música dos Concertos de Brandenburgo tem origens humildes e um percurso obscuro. A partitura foi esquecida durante dois séculos, engavetada algures na biblioteca do marquês até que, depois da sua morte em 1732, foi vendida por uns poucos centavos. Os concertos foram descobertos em arquivos do condado no século XIX, sendo publicados em 1850. Largos segmentos da obra foram provavelmente escritos no decurso das funções diárias de Bach como director musical em Köthen e Weimar. O Primeiro Concerto, por exemplo, existe numa versão alternativa (sem o terceiro movimento) como Sinfonia BWV 1046.1, composta muito mais cedo, durante o tempo que o compositor passou em Weimar e reorquestrada para os Concertos de Brandeburgo em 1721. Certas frases de muitos dos movimentos desta obra também podem ser encontradas em peças que Bach escreveu numa data posterior, tal como o primeiro movimento do Terceiro Concerto, ao qual foram acrescentados novos segmentos em 1729, para formar a cantata Ich liebe den Höchsten von ganzem Gemüte, BWV 174. Esta nuvem vertiginosa de versões anteriores e posteriores complica a ideia dos Concertos de Brandenburgo como uma obra acabada e estável e como um conjunto significativo de seis peças ligadas entre si. O que os Concertos “significam” é, portanto, discutível e de instável sustentação: à audição e análise crítica da obra no século XXI faltará sempre um contexto importante no que diz respeito ao seu processo criativo, aos detalhes da prática performativa e à teoria musical e estética do século XVIII. Além disso, o crítico contemporâneo é também influenciado pelos subsequentes séculos de história da música, que projectaram Johann Sebastian Bach para um palco semi-divino, que o próprio compositor provavelmente nunca imaginou como cenário plausível.
Se o significado e a percepção dos Concertos de Brandenburgo mudou ao longo do tempo e se a sua existência como um conjunto homogéneo é ténue e arbitrária, como podem os ensaístas e comentadores estarem todos a falar da mesma “coisa”? Se a definição do que são os Concertos é fluída e derivativa de épocas, contingências e remendos, que ideia devemos fazer deles? Será que constituem um conjunto significativo, apesar das suas origens díspares e das suas fronteiras difusas? Existe algures um único, verdadeiro e genuíno Concerto de Brandenburgo Nº 1 em Fá maior que seja independente das interpretações de maestros e eruditos, da sonoridade dos instrumentos e da fragmentação das partituras, da diversidade de versões e da sensibilidade das audiências? Se os Concertos de Brandenburgo soam hoje radicalmente diferentes do que soavam mesmo no século XIX, será que podem sequer ser considerados como a mesma obra?
Uma abordagem a estas questões seria a de considerar os Concertos de forma analítica, procurando na sua forma, orquestração e estrutura respostas que escapem a referências e circunstâncias históricas. No seu livro “The Social and Religious Designs of J. S. Bach’s Brandenburg Concertos”, Michael Marissen expõe este tipo de argumento, ao valorizar a ideia dos concertos como um conjunto significativo:
“Os concertos são considerados como estando ligados tematicamente, uma vez que os primeiros movimentos das seis peças empregam as três notas da tríade tónica no seu tema de abertura. Estão também ligados estilisticamente; três dos concertos fecham com movimentos de dança (o primeiro, terceiro e sexto), e três fecham com fugas (o segundo, quarto, e quinto). E, finalmente, como Rudolf Eller salientou pela primeira vez, estão ligados tonalmente pelos quatro tons utilizados (F maior, G maior, D maior, e B maior) para formar os dois tipos de dominantes e duplas dominantes em ambos os lados de C maior. Todos estes factores contribuem para a unidade na diversidade, que define a colecção como um conjunto significativo”
Assim, há um argumento puramente musical a ser defendido para os concertos como um conjunto, e portanto para a sua existência como um todo unificado. No entanto, não obstante a refutação histórica de tal argumento, (que poderia apontar, entre outras coisas, que muitos, mas mesmo muitos concertos barrocos terminam com finais de dança ou fugas), existem ainda problemas importantes ao considerar os Concertos de Brandenburgo como uma “obra” completa. Embora se possam esperar amplas semelhanças musicais entre seis obras escritas pelo mesmo compositor e sujeitas ao mesmo imperativo estilístico e formal, podemos facilmente enfatizar as estranhas disparidades e as imprevisíveis assimetrias que se registam principalmente no Segundo e no Quarto concertos. Além disso, a pontuação e orquestração das peças diferem de facto bastante.
Existem também importantes diferenças formais entre as seis concertos. Por um lado, o Primeiro é o único dos seis a consistir em quatro movimentos em vez de três. O Terceiro Concerto também apresenta um segundo movimento atípico, com dois acordes a formar uma cadência. Esta solução tem sido interpretada de forma variada nas reproduções da obra, ou como um convite a uma cadência realizada por um solista ou como uma breve pausa entre os dois movimentos principais. Em algumas actuações, o segundo movimento do concerto pode passar quase sem aviso prévio, enquanto em outras este “adágio” pode assumir uma vida longa e imprevisível nas mãos de improvisadores habilidosos. A questão da unidade dos Concertos de Brandenburgo, depende então de quais as semelhanças e as diferenças se opta por enfatizar e qual o registo performativo que é adoptado.
Para argumentar que os Concertos de Brandenburgo constituem simultaneamente um conjunto significativo de seis peças e uma obra unificada que pode ser reproduzida com fidelidade essencial, ter-se-ia de assumir que existe alguma essência, musical ou não, que permeia e liga estes seis concertos e os transforma num objecto coerente. Porque isto seria difícil de argumentar num sentido mais metafísico, muitos assumem que a força unificadora que liga os seis concertos é o próprio Bach. Ou seja, pode-se supor que Bach pensou nos concertos como um conjunto depois de os ter seleccionado como tal, emprestando-lhes assim uma unidade de pensamento e de propósito que tem sobrevivido até aos dias de hoje.
Outra abordagem a estas questões de unidade e significado nas obras musicais seria, assim, abordá-las historicamente, procurando nas intenções de Bach e nas visões conscientes e inconscientes dos seus contemporâneos o conceito de uma obra musical. No início de tal argumento, há que reconhecer o facto de não haver sequer provas de que o conjunto completo dos Concertos de Brandeburgo tenha sido executado durante a vida de Bach. De facto, o manuscrito de “Seis Concertos Para Vários Instrumentos” pode ter sido tocado pela primeira vez apenas no século XIX. Assim, se os Concertos de Brandenburgo existiam como obra plenamente realizada antes de meados do século XIX depende de onde se opta por localizar a essência de uma obra musical: a partitura está no coração de uma peça, ou a obra só existe quando é interpretada? A música existe apenas porque foi fixada pelo compositor, ou as partituras e as performances orquestrais têm uma relação mais fluida e fundamental entre si?
Depois de enviar a sua compilação para a Marquês de Brandenburgo em 1721, Bach passou, em 1723, para um novo emprego como Kapellmeister na Thomaskirche em Leipzig. É provável que ele não tenha pensado muito mais nos Concertos depois disso, a menos que precisasse de matéria prima para alguma outra produção urgente. No entanto, há algumas provas de que Bach pensou neles como um conjunto unificado. Como Lydia Goehr explica,
“Quando ‘o seu muito humilde e muito obediente servo’ Bach escreveu uma carta de dedicação a ‘sua Alteza Real Monseigneur Christian Ludwig’, para acompanhar o manuscrito dos seus “Seis Concertos Para Vários Instrumentos”, ele indicou algo importante. Falando de algumas ‘peças da minha composição’, talvez tenha indicado que as considerava como constituindo uma obra de composição única ou total, apesar de ter construído e aperfeiçoado cada peça independentemente de qualquer outra. A expressão ‘peças da minha Composição’ poderia referir-se ao facto de constituírem uma composição total – um conjunto de peças – assim como ao facto de serem peças compostas por Bach”.
Para além da especulação sobre o significado de Bach nesta passagem, muito foi também escrito sobre o impacto que a corte de Köthen poderia ter tido na música dos concertos. Salvo o primeiro, os concertos estão escritos para 17 músicos, exactamente o número de intérpretes que Bach tinha na altura à sua disposição. O patrono de Bach nesses anos, o Príncipe Leopoldo, era um músico amador e pensa-se que gostava de participar na interpretação das obras que os compositores que financiava compunham. Segundo Marissen,
“Bach soube escrever uma peça de tal forma que nenhuma passagem excessivamente exigente foi atribuída ao príncipe, que foi assim poupado ao embaraço de expor as suas limitações técnicas aos seus músicos de câmara.”
Assim, a parte estranhamente elementar da viola de gamba e as linhas marcadamente solísticas da viola do Sexto Concerto, bem como outras excentricidades de pontuação que resultam em alguns dos aspectos mais heterogéneos dos concertos, podem ser explicadas como sendo um resultado das limitações que Bach enfrentou em Köthen. Sendo obrigado aos caprichos do seu empregador, o maestro viu-se na contingência de escrever música para uma variedade de situações diferentes e de diferentes instrumentistas, e a um ritmo acelerado, de modo que bem pode ser perdoado por ocasionalmente reutilizar material mais antigo para cumprir prazos e ultrapassar dificuldades específicas.
Se se considerar Bach como a força unificadora por detrás dos Concertos de Brandenburgo, então eles podem ser pensados como um conjunto simplesmente porque Bach os compilou como tal, fixando estas peças anteriormente individuais num conjunto artístico personalizado. Por esta lógica, a única evidência que se pode precisar para estabelecer a validade da obra como uma categoria estável é que um homem estava por detrás de tudo, e que ele, de alguma forma concreta ou abstracta, legou, em 1721, o objecto inabalável conhecido como os Concertos de Brandenburgo à posteridade e não ao aristocrata Christian Ludwig.
Ao contrário desta visão, Lydia Goehr argumenta que as “obras” musicais são mais parecidas com categorias do que com objectos, e que mudam de significado ao longo do tempo, tal como fazem as palavras e as frases. Na sua opinião, a ideia de que a música se cristaliza em certas “obras” é um conceito que, historicamente, teve a sua origem na Europa do fim do século XVIII. Por outro lado, parece que a maioria da música se dá bem sem um tal conceito de propriedade individual ou universalidade. Como explica Goehr,
“A maioria de nós tende a ver as obras como expressões objectivas de compositores que antes da actividade composicional não existiam. Não tratamos as obras como objectos apenas feitos ou montados, como mesas e cadeiras, mas como produtos originais e únicos de uma actividade especial e criativa. Assumimos, ainda, que as propriedades tonais, rítmicas e instrumentais das obras são estruturalmente integradas e simbolicamente representadas por compositores em partituras. Uma vez criadas, tratamos as obras como existentes após a morte dos seus criadores, e quer sejam ou não executadas ou escutadas em qualquer momento. São artefactos existentes no domínio público, acessíveis a qualquer pessoa que se preocupe em ouvi-las”.
Embora esta visão seja certamente mais fácil de manter dado o pronto acesso às gravações proporcionadas pela tecnologia do século XXI, é certamente verdade que existem contextos musicais em que esta mentalidade pareceria delirante. Goehr argumenta que o meio musical do tempo de Bach era uma dessas esferas, e que ele e os seus contemporâneos não teriam pensado nas suas próprias obras como objectos sonoros fixos existentes fora da performance. Tendo sido compostas num mundo em que a música de concerto era criada e descartada em função de ocasiões específicas, as obras de Bach foram retomadas durante uma época em que o artista individual e o seu espólio criativo eram de importância primordial e em que certas obras musicais começaram a ser pensadas como obras-primas intemporais. Em certo sentido, as partituras de Bach encontravam-se no lugar certo e no momento certo, e a sua fama subsequente teria provavelmente feito pouco sentido para um homem cujo estatuto se situava algures no meio da hierarquia social do seu tempo.
Existe, portanto, o perigo de nos basearmos excessivamente na abordagem analítica ou histórica da questão das obras musicais. Por extensão, não existe uma resposta concreta ao enigma dos Concertos de Brandenburgo. É fácil deslizar para uma posição essencialista, argumentando que os Concertos de Brandenburgo existem como um objecto unificado fora da história ou, do outro ângulo, afirmando que eles obrigam a uma interpretação historicamente fundamentada, que é a versão “verdadeira” e ideal. É também verdade que, no fim de contas, uma obra musical é o resultado do comum acordo e uma ideia que é útil mas que, como muitas outras generalizações deste tipo, revela muitos paradoxos sob o escrutínio mais atento. Embora a ideia de que os Concertos de Brandenburgo são uma categoria musical que o ouvinte preenche com o seu próprio significado possa parecer assustadora nas suas implicações, pode não ter sido assim para Bach, e não precisa de ser para o ouvinte do século XXI. Bach provavelmente pensou na sua música como um produto do seu trabalho, mas também como parte de uma esfera espiritual e cultural que ele considerava como boa e justa. No século XXI, é difícil para muitos partilhar a opinião do compositor sobre a natureza divina e transcendente da criação musical. Mas ao rejeitarmos a interpretação que o compositor fez da sua própria obra, ficamos livres para atribuir aos Concertos de Brandenburgo as nossas próprias concepções de unidade, harmonia, beleza e significado.
A essência dos Concertos de Brandenburgo residirá talvez nesses três momentos: o iniciático, que é referente ao autor, ao seu pensamento, à sua época e ao seu contexto. O histórico, que construiu o que agora entendemos por Barroco e que projectou Johann Sebastian Bach para o seu merecido patamar olímpico. E o contemporâneo, que enebria os sentidos e eleva o espírito do audiente do século XXI. No fluir dinâmico destes três eixos, talvez seja possível encontrar o significado artístico dos Concertos.
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Fontes:
Peter Tracy . The Unity of the Brandenburg Concertos and the Idea of the Musical Work . Early Music Seattle
Michael Kennedy, Tim Rutherford-Johnson, Joyce Kennedy . “Brandenburg Concertos” . The Oxford Dictionary of Music
Lydia Goehr . The Imaginary Museum of Musical Works an Essay in the Philosophy of Music . Oxford University Press
Michael Marissen, The Social and Religious Designs of J. S. Bach’s Brandenburg Concertos . Princeton University Press
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