Os meios de comunicação ocidentais estão novamente a espalhar rumores sobre uma súbita deterioração do estado de saúde do Presidente russo Vladimir Putin, ou mesmo sobre a sua possível morte. A fonte destes rumores é um canal anónimo do Telegram, alegadamente ligado a Valery Solovey, um famoso contador de histórias ficcionais.
O Kremlin desmente regularmente estas afirmações, o Presidente parece estar em boa forma e ninguém consegue encontrar qualquer prova de que a saúde de Putin esteja em perigo.
Assim sendo, como é que um aldrabão anónimo se tornou uma fonte de “notícias” para a comunicação social “de referência” no Ocidente?
Normas jornalísticas abaixo de zero.
Na semana passada, o Daily Mail publicou um artigo com este título bombástico:
“Vladimir Putin não está morto: O Kremlin desmente as ‘mentiras’ segundo as quais o tirano russo, de 71 anos, morreu no seu luxuoso palácio florestal de Valdai, entre alegações de que estaria em curso um ‘golpe de estado’ em Moscovo”.
O Daily Mail referiu-se a um canal anónimo do Telegram que tinha difundido informações sobre a morte do presidente russo no dia anterior, acrescentando que o secretário de imprensa do Kremlin, Dmitry Peskov,
“disse ao meio de comunicação social estatal que o relatório era um ‘absurdo fio de informação'”.
Mas acontece que Peskov não comentou estes rumores e não existe tal história no site da RIA Novosti. Tal como a “notícia” da morte de Vladimir Putin, o “comentário” de Peskov foi distribuído através de canais anónimos do Telegram. No entanto, para os meios de comunicação ocidentais, esta notícia falsa constituiu um motivo para publicar disparates não confirmados. E para rotular Putin como “o tirano russo”. Porque no Ocidente não há tiranos, claro. Que ideia.
Tudo isto não é surpreendente, uma vez que, na mesma semana, os media britânicos espalharam rumores de que a saúde de Vladimir Putin se tinha deteriorado significativamente. O inqualificável The Mirror foi o primeiro a afirmar que o Presidente russo tinha sofrido uma paragem cardíaca e que teve de ser reanimado. Esta história apareceu também noutras publicações, como o Daily Express, e a Sky News Australia, entre outras.
Histórias semelhantes apareceram na imprensa corporativa ocidental, uma após a outra. Esta situação acabou por obrigar o secretário de imprensa do presidente russo a comentar o assunto. Na terça-feira, Peskov disse que os rumores sobre os problemas de saúde de Putin não tinham fundamento.
“Ele está bem, isto é mais uma história absolutamente falsa”.
O desmentido oficial, no entanto, não alterou a política editorial dos media ocidentais. Cometendo o mesmo erro com teimosa constância, os jornalistas continuam a citar um canal que já demonstrou várias vezes que as suas “informações privilegiadas” são completamente infundadas.
O russo “General SVR” que afinal é ucraniano.
A fonte regularmente citada pelos meios de comunicação ocidentais é a conta de Telegram do General SVR (SVR é o acrónimo russo de Foreign Intelligence Service). Foi criada no outono de 2020 e começou imediatamente a publicar informações sobre a alegada saúde debilitada de Putin.
Na quinta-feira à noite, publicou a seguinte mensagem:
“O Presidente russo Vladimir Putin morreu esta noite na sua residência de Valdai. Às 20:42, hora de Moscovo, os médicos pararam as tentativas de reanimação e declararam-no morto. Os médicos estão agora fechados no quarto com o cadáver de Putin e estão a ser detidos pelos serviços de segurança do Presidente <…> As medidas de segurança [para proteger] o duplo do Presidente foram reforçadas. Estão em curso negociações activas. Qualquer tentativa de fazer passar o sósia pelo Presidente após a morte de Putin [conduzirá] a um golpe de Estado”.
O General SVR, que afirma que tem “contactos” nas agências de aplicação da lei, informa regularmente que o Kremlin contratou duplos para representar Putin em público.
Na semana passada, o General SVR escreveu que, na noite de 22 de outubro, os agentes dos serviços de segurança de Putin que estavam de serviço na sua residência ouviram um barulho e o som de uma queda provenientes do seu quarto. Quando chegaram, alegadamente viram Putin deitado no chão, perto da cama, e ao seu lado havia uma mesa virada com comida e bebidas.
“Os médicos fizeram a reanimação, tendo diagnosticado preliminarmente uma paragem cardíaca. A ajuda foi prestada a tempo, os médicos reiniciaram o seu coração e Putin recuperou a consciência. <…> Este caso de paragem cardíaca alarmou seriamente o círculo íntimo do presidente, apesar do facto de os médicos assistentes terem avisado atempadamente que Putin está muito mal e que é improvável que sobreviva até ao final do Outono”.
Referindo-se a este post de segunda-feira, o The Mirror indicou que o canal terá sido criado por um antigo tenente-general do Kremlin, conhecido pelo pseudónimo Viktor Mikhailovich. Ao mesmo tempo, o jornal admite que o informador nunca forneceu qualquer prova que confirmasse os rumores que dissemina e que as últimas mensagens do canal não foram verificadas.
Este canal do Telegram é também popular entre alguns russos, especialmente entre os apoiantes da oposição. O misterioso “General SVR” foi mesmo convidado por canais populares do YouTube como o Feygin Live e o Echo of Moscow. Nos vídeos, a voz do homem que se apresentou como Viktor Mikhailovich foi alterada. No entanto, a publicidade pregou uma partida ao criador do canal: um pagamento por WebMoney revelou a verdadeira identidade da pessoa que comunicou com os entrevistadores.
O entrevistado era Viktor Ermolaev, membro da Ordem de Advogados da Ucrânia, originário de Kharkov. Fontes da RT russa nos serviços de aplicação da lei também confirmaram esta informação.
Putin está esqueléctico, sofre de cancro, de Parkinson, de transtornos psíquicos; e depois de ter morrido, demitiu-se.
Durante muito tempo, o maior divulgador do canal General SVR foi o antigo professor do MGIMO (Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscovo), Solovey, que fazia referências frequentes às publicações desta conta. O académico, que gosta de espalhar boatos e informações sensacionalistas, também fazia previsões sobre as mudanças radicais que supostamente estavam prestes a acontecer na Rússia – como a saída antecipada de Vladimir Putin do cargo de presidente e a erupção de protestos nacionais em massa. Nada disto se concretizou, claro.
No entanto, o tema preferido tanto do General SVR como de Solovey é a saúde do Presidente russo. De facto, as “informações privilegiadas” reveladas por Solovey e pelo General SVR são tão semelhantes, que se suspeita que o excêntrico professor seja também administrador do canal, embora Solovey tenha negado esse envolvimento directo, sugerindo que o administrador era apenas um conhecido seu.
Em Setembro de 2020, numa entrevista ao apresentador de televisão ucraniano Dmitry Gordon, Solovey afirmou que era um “membro associado” de uma poderosa organização secreta.
“Há forças e pessoas cuja influência excede qualquer poder. Em particular, são mais fortes do que o FSB [Serviço Federal de Segurança da Rússia], mais fortes do que o Serviço de Informações Externas, mais fortes do que a Direção do Estado-Maior. Tratam-se de organizações internacionais não governamentais, chamemos-lhes assim. Há várias organizações deste género no mundo. Eu sou membro associado da filial da Europa de Leste de uma dessas organizações”.
Ele afirmou que a organização não tem nada a ver com maçons ou cavaleiros templários e que “não é uma organização ocultista”. Solovey também disse que ser membro desta comunidade permite-lhe
“estar integrado em círculos bastante amplos do establishment, não apenas na Rússia, mas também na Europa e nos EUA”.
Se Solovey pensa que estas declarações lhe conferem credibilidade, é tão louco como parece.
Embora a credibilidade de Solovey seja ainda mais duvidosa do que a do canal anónimo do Telegram, os meios de comunicação ocidentais citam-no frequentemente. Por exemplo, pouco antes do 70º aniversário do líder russo no ano passado, Solovey fez uma “declaração sensacional” que foi então citada pelo Daily Mail.
Solovey afirmou que Putin pretende levar o mundo inteiro consigo quando morrer e supostamente já decidiu usar armas nucleares tácticas na Ucrânia. Afirmou que a situação actual é mais perigosa e mais próxima de um “apocalipse nuclear” do que a crise dos mísseis cubanos durante a Guerra Fria. Aqui terá alguma razão, mas pelos motivos errados.
O ensandecido personagem jurou ainda a pés juntos que as igrejas ortodoxas russas foram obrigadas a realizar serviços especiais de oração pela saúde do presidente.
O Mirror também se referiu às afirmações de Solovey sobre a consistente “deterioração da saúde” do líder russo. A publicação observa que, tal como o General SVR, Solovey diz que Putin sofre de doenças graves, incluindo cancro, doença de Parkinson e transtorno esquizoafectivo.
Em Março, com base nas afirmações de Solovey, o The Mirror escreveu que Putin tinha perdido muito peso e que as enfermeiras estavam a usar algodão para esconder isso do público.
O artigo foi complementado por fotos recentes de Putin. Nas imagens ele parece bastante saudável. Numa delas, o presidente é fotografado durante uma reunião com o líder chinês Xi Jinping – os dois líderes apertam as mãos e Putin sorri.
Além destas fontes, o Mirror já tinha citado o antigo chefe do MI6 [serviço secreto de inteligência do Reino Unido] Richard Dearlove, que em Setembro do ano passado afirmou que o líder russo renunciaria ao cargo até 2023 devido a problemas de saúde. Estamos já em Novembro. Putin continua a residir no Kremlin.
O The Hill também se referiu às previsões de Solovey, anunciando que Putin está com uma doença terminal e não sobreviverá a este Outono.
Os clones de Vladimir.
Juntamente com os rumores sobre a suposta rápida deterioração da saúde do presidente russo, outra história popular é que o Kremlin recorre frequentemente a duplos que dão a cara, e o corpo, por Putin.
Segundo Solovey, que é citado pelos meios de comunicação ocidentais, os clones são às dezenas e substituem-no durante aparições públicas e reuniões com líderes estrangeiros.
Por exemplo, citando alguns observadores, o Daily Mail relatou que a aparência física do líder russo mudou ao longo dos anos, o que pode ser considerado como uma prova do facto de ele recorrer a duplos corporais quando se trata de compromissos que não cumpre porque está doente ou porque os considera excessivamente perigosos.
Um dos rumores que circulam com frequência é que durante a recente viagem ao Daguestão, um “falso” Putin saiu para cumprimentar a multidão.
O Kremlin tem garantido repetidamente que Putin não tem duplos. Por exemplo, na terça-feira passada, Peskov disse que tais declarações apenas fazem rir os funcionários do Kremlin.
“Não. Não há duplos. Isto enquadra-se na categoria de boatos informativos absurdos que estão a ser persistentemente veiculados por vários meios de comunicação social. É claro que isso só nos faz sorrir”.
Em 2020, Putin disse em entrevista à TASS que não tinha duplos. Segundo o presidente, a ideia foi-lhe de facto proposta, por questões de segurança, no início dos anos 2000, mas ele recusou.
“A ideia surgiu, mas recusei-a. Isso ocorreu durante alguns dos momentos mais difíceis da luta contra o terrorismo”.
É natural que no Ocidente haja muita gente que acredite nisto, porque na verdade o acesso a imagens e aos discursos do líder russo não chegam à Europa e aos Estados Unidos. Mas basta vê-lo e ouvi-lo, para percebermos que a hipótese dos clones é mais que fantasiosa. Para além da aparência física, a linguagem gestual e os trejeitos discursivos são claramente um produto original.
De qualquer forma, se o Daily Mail quer explorar este género de teorias da conspiração, se calhar seria mais fácil vender a mesma banha da cobra recorrendo a um outro personagem:
Rumores que nunca são confirmados.
Muita da especulação sobre os problemas de saúde do presidente russo tem origem na Ucrânia. Por exemplo, em Janeiro, o chefe da inteligência militar ucraniano, Kirill Budanov, afirmou que Putin tem uma suposta doença incurável e alertou para a sua morte iminente numa entrevista à ABC News. Esta declaração foi divulgada por diversos meios de comunicação, incluindo o Daily Mail. Ao mesmo tempo, a publicação observou que as alegações de Budanov não eram apoiadas por quaisquer provas. Segundo Budanov, o seu serviço de inteligência sabe sobre o cancro do presidente “a partir de fontes”.
Em Dezembro de 2018 Putin comentou os rumores sobre a sua saúde, respondendo a uma pergunta sobre a eventualidade de estar doente:
“Nem pense! Faço exercícios e estou bem, graças a Deus. Eu tento cuidar da saúde. Mas, assim como toda a gente, posso apanhar uma gripe ou outras coisas assim. Mas estou bem, agora.”
Os rumores sobre a saúde de Putin também foram refutados no Ocidente. Em Julho do ano passado, o director da CIA, William Burns, disse que Putin era um homem bastante saudável.
“Há muitos rumores sobre a saúde do presidente Putin, mas, tanto quanto sabemos, ele é saudável até demais.”
Pouco antes disso, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, numa entrevista ao canal de televisão francês TF1, observou que o líder russo aparece em público quase todos os dias e todos podem vê-lo na televisão e ouvir os seus discursos.
“Não creio que pessoas sãs possam ver nesta pessoa sinais de algum tipo de doença ou enfermidade. Deixo isso para a consciência daqueles que espalham tais rumores”.
James Nixey, Director de programas Rússia-Eurásia na Chatham House, disse ao The Independent que o canal General SVR é conhecido por espalhar desinformação. Embora a saúde de Putin estivesse sob escrutínio mesmo antes do início da operação militar da Rússia na Ucrânia, Nixey classificou os relatórios frequentes sobre a sua condição física como resultado de “ilusões”, acrescentando:
“71 anos é a esperança média de vida dos homens russos. Ele não é o homem comum. Ele terá cuidados de saúde muito melhores do que qualquer outra pessoa e parece não beber muito em comparação com seus antecessores. Acho que é seguro presumir que ele está com uma saúde razoavelmente boa para um homem da sua idade.”
É por estas e por outras que dá vontade de rir quando os líderes ocidentais falam em “propaganda russa”. Se há propaganda abundante – e até grosseira – a circular sem freio, é no Ocidente. Comparativamente com os meios de comunicação social europeus e norte-americanos, qualquer agência de desinformação russa passa por incompetente.
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