“A triste verdade é que o mal é feito principalmente por pessoas que nunca se decidiram a ser boas ou más.”
Hannah Arendt . Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil . 1963

 

1961. Depois de uma bem sucedida operação da Mossad, Eichmann, o burocrata nazi responsável pela logística do holocausto, é capturado na Argentina e trazido clandestinamente para Israel, onde é julgado e condenado à forca. Hannah Arendt, já então uma incontornável referência no âmbito da ciência política, judia alemã refugiada nos Estados Unidos e professora em Chicago, escreve para o New Yorker oferecendo-se para fazer a cobertura do julgamento, em Jerusalém. O editor da prestigiada (na altura) publicação, acede, ao ponto até de se apaixonar por ela.

Depois de assistir a uma boa parte das audiências (entretanto aborreceu-se deveras) e de ler bem lidas as 3600 páginas do inquérito judicial, Arendt chega a uma conclusão só: Eichmann não é necessariamente um vassalo de satã. Eichmann é, antes, um simples idiota que se limita a cumprir ordens sem querer saber das consequências. Este alheamento é, para Arendt, uma recusa da condição humana. Discípula de filósofos como Edmund Husserl, Søren Kierkegaard e Martin Heidegger, ela acredita que o homem se define pela capacidade de pensar, na medida em que o pensamento permite o exercício moral. O pensamento diferencia assim a condição humana, não no sentido cartesiano e racionalista, mas na acepção transcendental. Eichmann, o mais banal dos genocidas, não é necessariamente um vilão da pior espécie. É um burocrata que decaiu para um modo sub-humano.

O extenso artigo no New Yorker, publicado em 1963, e o livro que a este propósito edita pouco tempo depois, caem com aparato atómico nos círculos intelectuais e académicos americanos, bem como em Israel, onde será considerada persona non grata durante décadas (o “Relatório Sobre a Banalidade do Mal” só foi ali publicado muito recentemente). Arendt ousa até implicar as lideranças judaicas no holocausto, expondo situações de conluio entre judeus e nazis e argumentando que, se as estruturas sionistas e os grupos tribais fossem menos organizados, os exterminadores do Terceiro Reich teriam mais dificuldade em matar tanta gente.

Também os judeus que faziam parte das milícias que ajudavam os alemães a controlar os guetos, não se viam como agentes do mal e eram, aparentemente, pessoas normais, chefes de família, líderes comunitários, jovens ingénuos. Limitavam-se a fazer pela vida, procurando aceder a pequenos privilégios num contexto de fome, medo e desespero. Eram os Eichmann do lado dos exterminados.

Em favor da tese de Arendt, Stanley Milgram conduziu entretanto, em 1962, na Universidade de Yale, aquela que é talvez a mais polémica experiência da história das ciência sociais. Sobre essa experiência, o Contra publicará um texto dedicado em breve. Por agora basta dizer que Milgram chegou à conclusão, baseada nas evidências empíricas do seu célebre trabalho, que existe no ser humano uma tendência assustadora para a obediência irracional, para a cedência à pressão social e para agir em conformidade com o papel funcional.

Este assunto do mal absoluto é mais antigo que o homem, na verdade, porque nasceu no mesmo dia e à mesma hora que Deus. Seja como for, sempre foi muito difícil entender as razões da vilania humana, tanto para o filósofo, como para o teólogo. De Santo Agostinho a Nietzsche, há muita teoria por onde escolher, mas nenhuma ajuda grande coisa. Para os teólogos, deve fazer alguma confusão que Deus – como entidade omnipresente e omnipotente – permita a uns tipos mais ou menos grotescos a liberdade de assassinarem milhões de pessoas (por exemplo, porque há muito mais manifestações do mal absoluto para além do genocídio). Para os filósofos, torna-se excessivamente irritante não conseguir libertar o homem dos seus piores instintos.

Modelo filosófico sobre modelo filosófico, todos abrem falência perante a barbaridade inerente à raça dos homens. Ainda por cima, os grandes vilões da história parecem não obedecer a qualquer tentativa de sistematização: são cultos e ignorantes, brutos e sensíveis, estúpidos e brilhantes, banais e extraordinários. Não se percebe.

Hannah Arendt, que não se preocupava muito com aquilo que os outros poderiam pensar, pensou bastante no assunto. E não tinha problema nenhum em escrever exactamente o que pensava. Da mesma forma que já tinha tido a coragem de enfiar Hitler e Estaline no mesmo saco da epistemologia do mal (em 1951, isto era escandaloso) no seu trabalho de referência, “As Origens do Totalitarismo”, da mesma forma que se conseguiu apaixonar pelo filósofo do regime Nazi, que foi na verdade o amor da sua vida, Heidegger; a autora alemã estipula uma tese sobre a ruindade que, não sendo politicamente correcta, resolve vários problemas: o mal não está na condição humana, na vertente do ser pensante, consciente e moralmente capaz. Ao contrário, o mal triunfa apenas quando o ser recusa o exercício moral e logo, a sua condição humana.

Recentemente foram tornadas públicas certas confissões de Eichmann que podem pôr em causa a pertinência do sistema de pensamento de Arendt quando adaptado ao burocrata nazi, mas convenhamos: isto é mais elegante que a equação da Relatividade Restrita.