Por incrível que possa parecer, Jesus Cristo, que está na génese de uma das mais importantes religiões alguma vez professadas, e será, a par de Buda, Platão e Confúcio, um dos mais influentes personagens da história universal, nunca foi retratado numa série com mais de uma temporada. E tendo sido personagem primeira de vários filmes, a sua história foi retalhada, dessacralizada, deturpada, secularizada e banalizada. Hollywood não é propriamente uma máquina evangelizadora, muito pelo contrário: as grandes produtoras são dominadas por ateus ou por judeus, os guionistas têm a reputação antiga da militância marxista, os actores são, regra geral, lamentáveis exemplos da espécie humana, arruinados espiritualmente pela opulência, o vedetismo, o egocentrismo e a pretensão que são próprios do seu estatuto de palhaços ricos.
Talvez os dois casos mais paradigmáticos da produção cinematográfica sobre a vida de Cristo são “A Última Tentação de Cristo”, de Martin Scorcese e “A Paixão de Cristo” de Mel Gibson. São dois bons exemplos, tanto pelo carácter antípoda dos realizadores, como pela falência moral e criativa das suas abordagens. Scorcese, um típico ateu elitista, pseudo-intelectual armado aos cucos de Hollywood, aventurou-se pela heresia, humanizando de tal forma a figura do messias que o transformou num cobarde, para elevação de ninguém e revolta de todos os crentes. Mel Gibson, um dissidente da cartilha californiana até na forma como radicaliza a sua fé cristã, acabou também por cair na blasfémia, mas ao contrário: ao ilustrar visceralmente a violência a que o nazareno é submetido nas breves horas do percurso que o leva à Cruz, dessacralizou o seu corpo, corrompeu a sua Paixão, humanizou-o excessivamente, mesmo que de forma inadvertida, enquanto utilizava esse indescritível martírio para propagar a cartilha anti-semita.
Nada que possamos ler nos evangelhos justifica a abominável interpretação de Scorcese e por certo que nenhum dos evangelistas concordaria com a perspectiva que Gibson deu ao Calvário.
É claro que podíamos muito bem enumerar acrescidos e obscenos, ou simplesmente inócuos, exemplos da forma como Cristo tem sido (mal) tratado pelo grande e pelo pequeno ecrã. De “Jesus Christ Super Star”, que tanto contribuiu para uma estupidificante popularização de Jesus como um ecuménico hippie pronto para se enfiar numa carrinha Vokswagen rumo a S. Francisco, ao divertidíssimo mas inconsequente “The Life of Brian”, dos Monty Python. Mas não é esse na verdade o assunto deste artigo e o Contra procura invariavelmente ser parcimonioso com o tempo dos seus leitores.
Porque a propósito de tudo isto, vem “The Chosen”, uma série de televisão americana criada, dirigida e co-escrita pelo cineasta Dallas Jenkins, sobre a vida e o ministério de Jesus de Nazaré.
Passada principalmente na Judeia e na Galileia no século I, a série centra-se em Jesus, e naqueles que o seguiram ou que com ele viveram mais de perto. A série é protagonizada por Jonathan Roumie (Jesus), Shahar Isaac (Simão que será Pedro), Elizabeth Tabish (Maria Madalena), Paras Patel (Mateus), Noah James (André), George H. Xanthis (João) e Erick Avari (Nicodemos) entre um vasto elenco, necessário a uma produção com muitas dezenas de personagens.
Uma nova maneira de produzir televisão.
Depois de Jenkins ter notado que aquela que para muitos é a mais bela história jamais contada nunca tinha sido conduzida ao logo formato televisivo, que pudesse ser visto em stream, decidiu criar a série em parceria com a Angel Studios. Com a intenção de se diferenciar das anteriores representações de Jesus, criou um arco de história que se centra mais nas pessoas que com ele interagiram, embora procurando apresentar o messias de uma forma mais “pessoal e íntima”.
Os produtores da série utilizaram métodos inovadores de financiamento e lançamento, principalmente através de crowdfunding na plataforma Angel Studios. A angariação de fundos para a primeira temporada, bem como para as subsequentes, já fez de “The Chosen” a série de TV ou projecto cinematográfico de maior sucesso financiado por crowdfunding. Em 2021, os espectadores tinham contribuído com 40 milhões de dólares para a sua produção. No final de 2022, os criadores fizeram uma parceria com uma empresa sem fins lucrativos, a Come and See Foundation, para gerir o financiamento, o que permite aos doadores receberem uma dedução fiscal pela sua contribuição. Esta fundação é também responsável pela tradução da série para 60 línguas.
Para além do crowdfunding e do modelo pay-it-forward, as receitas também são geradas através de vários outros métodos. O programa está licenciado para outras plataformas de streaming e redes de televisão, como a Amazon Prime Video, a Peacock e a Netflix. As vendas de merchandising constituem fontes adicionais de receitas, tal como as estreias limitadas nos cinemas. Desta forma, é possível disponibilizar a série, que neste momento tem 3 temporadas de 7 previstas, globalmente e de forma gratuita.
Os novos episódios são lançados no sítio Web e na aplicação mobile do projecto, sendo posteriormente disponibilizados através de várias plataformas de streaming e redes de televisão. Alguns episódios, em especial as estreias e os finais de temporada, foram lançados nos cinemas antes de serem disponibilizados gratuitamente. Em 2023, Mark Sourian, antigo executivo da DreamWorks, foi contratado para liderar o desenvolvimento de um universo de entretenimento com futuros filmes e programas baseados na série original.
Os produtores estimam que os primeiros 16 episódios tenham sido vistos 312 milhões de vezes em novembro de 2021. De acordo com Sandy Padula, um consultor independente contratado pelos produtores, mais de 108 milhões de pessoas em todo o mundo tinham visto pelo menos parte de um episódio de “The Chosen” em Novembro de 2022.
Ficção que serve a fé. E a verdade histórica.
Mas vamos ao que interessa: porque é que esta série se destaca de outras produções centradas na Bíblia? Bem, em primeiro lugar porque tenta ser fiel ao Novo Testamento. Logo depois do genérico do seminal episódio da primeira temporada surge este preâmbulo:
The Chosen é baseado nas histórias verdadeiras dos evangelhos de Jesus Cristo. Alguns locais e cronogramas foram combinados ou condensados. Histórias de fundo de alguns personagens e diálogos foram adicionados. No entanto, todo o contexto bíblico e histórico e a criatividade artística são projectados para apoiar a verdade e a intenção das Escrituras. Os espectadores são encorajados a ler os evangelhos.”
Reparem na ênfase dada à verdade dos evangelhos (os bolds são do Contra). É claro que Dallas Jenkins é um cristão que lê os textos sagrados como “histórias verdadeiras” e o trabalho ficcional serve para apoiar a “verdade das escrituras”. Vamos perceber mais à frente porque é que estas afirmações são tão importantes.
Apesar da dedicação à verdade factual, devemos reconhecer que os evangelhos, por si só, dificilmente poderiam oferecer material para uma série com 7 temporadas que fosse por eles estritamente constituída. Afinal, os quatro evangelistas contam basicamente a mesma história. Ainda por cima, os evangelistas sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) retratam, mais circunstância, menos circunstância, os mesmos episódios da vida de Cristo. E o Evangelho de João, que se desvia dos relatos sinópticos, é mais carregado de teologia de que de acção. É assim natural que os autores tenham optado por criar um corpo ficcional que dê substância e fôlego à narrativa. A boa notícia é que o fizeram a partir de uma leitura inteligente e coerente do Novo Testamento.
As personagens são exploradas ficcionalmente a partir de deduções lógicas que podemos inferir dos textos sagrados. Por exemplo: Mateus é brilhantemente construído a partir daquilo que o seu evangelho nos diz dele, nas linhas e nas entrelinhas. É célebre a forma como inicia o seu relato, com uma exaustiva geneologia de José, apesar de Jesus nem sequer ser filho dele, no sentido em que foi concebido por uma virgem. Mas em todo o texto percebemos facilmente que Mateus era de certeza um apóstolo obcecado com o detalhe, o número, a listagem, a minudência. Afinal, é seu o Evangelho que mais se preocupa com a relação com o Antigo Testamento em geral e a Lei de Moisés em particular. Esta tendência para o pormenor e o rigor, a qualidade do grego koiné com que Mateus burila o texto e o facto de sabermos que era um judeu que cobrava impostos a judeus, dá aos autores de “The Chosen” imenso material para trabalharem no respeito pelo espírito e até pela literalidade do Evangelho. Assim sendo, Mateus é-nos oferecido como um homem odiado pelos seus, marginalizado, introvertido, tímido, objectivo, altamente inteligente e quase autista, com um talento extraordinário para a matemática e mantendo boas relações com as autoridades romanas, já que para eles trabalhava e por eles era protegido, de forma a cumprir com a sua profissão.
Ora, este processo de dedução é desenvolvido com todos os personagens. Percebemos, à medida que a série se desenvolve e conhecemos as pessoas que acompanharam Jesus, as suas motivações e os seus problemas pessoais, que estão por trás das hesitações e falhas de fé que nos evangelhos Jesus tanto se queixa. Estes homens e estas mulheres têm um passado que os define, famílias que abandonaram, profissões de que desistiram, ambições que abjuraram. Estes homens e estas mulheres têm fome e sede, têm medo, têm esperança, experimentam a angústia e o júbilo. Graças à criatividade altamente contextualizada dos redactores da série, as dificuldades imensas inerentes a fazer parte deste grupo de eleitos são cruzadas de forma deveras eficaz com as suas características personalísticas e os seus percursos pessoais.
Por exemplo, as preocupações securitárias com eles próprios e, sobretudo, com Jesus, teriam que ser uma constante e uma fonte de ansiedade para os discípulos. Considerando a hostilidade do clero judaico, dos funcionários e dos militares romanos e dos gentios, considerando a revolucionária e disruptiva e – do ponto de vista dos fariseus – herética mensagem do messias, estas aflições faziam com certeza parte do seu quotidiano, apesar de só de passagem serem enunciadas nos evangelhos. A série evoca – e bem – essas preocupações.
Por outro lado, as necessidades logísticas e financeiras deviam ser também uma dor de cabeça permanente para os apóstolos, na sua maioria pobres e conduzidos ao nomadismo por uma região do mundo que não oferece facilidades a peregrinos que ainda por cima seguiam um líder que teimava em não querer saber das premências materiais da existência terrena. A série debruça-se também sobre essa vertente prosaica do percurso evangélico. E encontra soluções interessantíssimas para essas dificuldades. Como é que Cristo falava, como nos Sermões da Montanha ou do Deserto, para milhares de pessoas, numa altura em que não existiam quaisquer tecnologias de amplificação da voz? Construindo um palco com uma tela de linho atrás, de forma a que o som fosse projectado no sentido da audiência, ou espalhando os apóstolos por entre a multidão, para que repetissem para aqueles que mais longe se encontravam do orador aquilo que ele dizia.
Em “The Chosen”, a ficção serve para fortalecer a realidade histórica e não para a falsificar. Neste aspecto, como em outros, é uma obra notável.
Isto considerando, claro, que os autores, como já foi referido, entendem os evangelhos como factuais e os apóstolos como os seus redactores. Ao contrário da maior parte dos académicos contemporâneos que se especializam nos estudos bíblicos, mas que não creditam os seguidores de Cristo como os verdadeiros autores dos evangelhos e que fazem o possível para transformar o Novo Testamento numa grande metáfora sem qualquer relação com a realidade histórica, “The Chosen” não hesita na sua ortodoxia cristã e – por isso – não tenta esconder ou ocultar as mais controversas secções dos evangelhos. Na série, Jesus cumpre milagres a um ritmo intenso, como constantemente são testemunhados pelos evangelistas. E profere as palavras mais audazes que encontramos no teologicamente ousado texto de João. Ninguém aqui tem medo de assumir que a intenção é seguir as escrituras com o rigor que merecem.
Apesar desta clara e muito honesta tendência evangélica, a produção conta com consultores de três tradições religiosas, que dão o seu contributo perito. Os consultores são o rabi messiânico Jason Sobel, da Fusion Global Ministries; o padre católico e director da Family Theater Productions, Padre David Guffey; e o professor do Novo Testamento na Universidade de Biola, Dr. Doug Huffman. Eles analisam os guiões e fornecem factos ou contexto sobre a história bíblica, cultural e sócio-política do enredo. O teólogo judeu ortodoxo David Nekrutman foi recrutado para o elenco de consultores para a quarta temporada do programa.
Competência técnica e rigor histórico.
Muito bem produzida e cinematografada, interpretada por actores praticamente desconhecidos (com a excepção de Erick Avari, que dá um competentíssimo corpo a Nicodemos), mas que oferecem um trabalho que oscila entre a adequada sobriedade e o brilhantismo artístico, “The Chosen” é uma série que não procura deslumbrar com efeitos digitais ou artefactos de produção. O que não faltam aliás são sequências em que a produção decidiu investir mais em figurantes humanos do que em construção digital.
A cenografia e o guarda-roupa muito contribuem para a fidelidade histórica que a série pretende cumprir. Ninguém pode apontar um excesso no desenho dos trajes, uma falha no fabrico dos ambientes domésticos ou nas paisagens urbanas. E reforçando a qualidade e o rigor da fundamentação conceptual, Dallas Jenkins leva até a narrativa a profundidades que ninguém até aqui tinha experimentado: em “The Chosen” percebemos, por exemplo, a influência da cultura grega, e da tradição filosófica helenística, no discurso e no método de Jesus, que terá por certo tido acesso a escritos platónicos que ensinavam a dialéctica de Sócrates, e em cuja retórica encontramos constantemente as figuras de estilo da parábola e da alegoria, que o nazareno tão bem veio a dominar.
Na verdade, a série peca apenas em duas dimensões: a primeira deriva do facto de ser falada em Inglês, quando muito ganharia se a sua oralidade fosse expressa em aramaico, em grego e em latim. As exigências do mercado americano, que rejeita as legendas, têm estas chatas consequências. A segunda passa pela constatação de que, pelo menos até à terceira temporada, os autores estão a omitir uma característica da personalidade de Jesus que é muito vincada nos evangelhos: o mau feitio. O nazareno não é a mais simpática das criaturas. É exigente e frequentemente intratável com os discípulos. É muitas vezes desagradável com os familiares e, de forma até chocante, com a mãe. Cede aqui e ali ao temperamento. Estes traços personalísticos são mais nítidos na única tradução que temos do grego original dos evangelhos para o português: a de Frederico Lourenço. Mas é perfeitamente perceptível também na vulgata de S. Jerónimo que é a versão comum do Novo Testamento, traduzida para português do latim.
É no entanto bastante provável que, com o desenvolvimento da narrativa nas próximas temporadas, os autores sejam mais fiéis a essa faceta menos cordata do messias, que até agora não nos foi dada.
Anti-spoiler: três temporadas em três parágrafos.
A primeira temporada passa-se na Galileia do século I, onde Jesus começa a formar um grupo para o seu ministério, convidando várias pessoas de diferentes origens. À medida que realiza os seus primeiros milagres, o messias convoca Maria Madalena; o pedreiro Tadeu; o membro do coro do Templo Tiago Pequeno; os pescadores Simão, André, Tiago Grande e João; o cozinheiro Tomé, o viticultor Ramá; e o cobrador de impostos Mateus para o seguirem. A temporada culmina com o grupo a viajar pela Samaria, onde Jesus inicia o seu ministério público depois de se ter revelado a Fotina, uma mulher samaritana.
Começando na Samaria, a segunda temporada passa para regiões vizinhas, como a Síria e a Judeia, onde Jesus continua a constituir o seu grupo de seguidores. Enquanto se desmultiplica em milagres e ensinamentos, Jesus chama também o discípulo de João Batista, Filipe, o arquitecto Natanael e o zelota Simão Z, e prepara-se para um importante sermão. À medida que as notícias do seu ministério se espalham pela região, Jesus encontra oportunidades e dificuldades. A temporada culmina com os preparativos para o Sermão da Montanha e entrada em cena do aprendiz de comerciante Judas Iscariotes.
O grupo regressa a Cafarnaum na terceira temporada, com a crescente popularidade de Jesus a perturbar diferentes grupos sociais e políticos, incluindo os romanos e os fariseus. Após o Sermão da Montanha, Jesus envia os seus doze apóstolos, dois a dois, para pregarem e fazerem milagres sem ele, levando os discípulos a enfrentarem o seu maior desafio até então. Jesus regressa então à sua cidade natal, Nazaré, retorno às origens que resulta numa atribulada estadia e numa mudança no seu ministério. A temporada culmina com Jesus a alimentar milhares de pessoas (milagre dos peixes e dos pães) e a caminhar sobre a água.
The Chosen é uma produção fiel aos evangelhos, mas que sobretudo respeita e estima o espectador. Por isso, sejam crentes ou ateus, o ContraCultura recomenda vivamente aos seus por demais estimados leitores o consumo desta série, que entretém, eleva, ensina e evangeliza, e que pode ser encontrada, para visualização gratuita em streaming, aqui.
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