Bard, o chatbot de IA do gigante tecnológico já é conhecido por apresentar informações falsas como factos. Talvez por isso, a Google está agora a testar um produto de jornalismo dirigido às principais organizações noticiosas, de acordo com o New York Times, que num artigo publicado na quinta-feira da semana passada citava três fontes próximas do assunto. O Times foi alegadamente um dos meios de comunicação abordados pela Google.

Conhecida internamente como Genesis, a ferramenta é capaz de gerar notícias com base no quem, quê, onde e quando do cânone jornalístico, segundo as fontes do NYT. A empresa alega que está a criar uma “tecnologia responsável” – um eufemismo destinado a cativar as plataformas de comunicação social que não se mostram interessadas em substituir o seu património humano por algoritmos de rede neuronal.

Para além do factor arrepio na espinha – dois executivos que assistiram a apresentação da Google rotularam o sistema como  “inquietante” –  a abordagem mecanizada do Genesis à narração de histórias incomodou alguns jornalistas. Esse incómodo não deve ser alheio ao facto de estarem a ver as suas profissões a morrer à frente dos seus olhos.

Dois engenheiros não identificados do gigante de Silicon Valley disseram ao NYT que a abordagem do Genesis parecia não dar valor ao talento necessário para produzir notícias que fossem não só exactas mas também convenientemente redigidas. Dada a reputação aldrabona do Bard, este sistema não deve ser capaz de fazer nem uma coisa nem outra.

Um porta-voz da Google insistiu que o Genesis

“não pretende substituir o papel essencial que os jornalistas têm na reportagem, criação e verificação de factos dos seus artigos, mas pode oferecer opções para títulos e outros estilos de escrita.”

Uma outra fonte afirmou que a Google encarava o Genesis como um “assistente pessoal para jornalistas”, capaz de automatizar tarefas rotineiras para que o redactor se pudesse concentrar em tarefas mais exigentes, como entrevistar pessoas e fazer reportagens no terreno. Ou seja: tudo o que a IA ainda não pode tecnicamente fazer. Mas a parte que na verdade estabelece a identidade do jornalista e profundidade do seu talento, que é a da redacção, pode fazer a IA.

A descoberta de que a Google estava a trabalhar num “ChatGPT para o jornalismo” provocou uma preocupação generalizada de que a tecnologia poderia abrir uma caixa de Pandora de notícias falsas, para além de uma monumental vaga de desemprego no sector. O chatbot de IA do Google, Bard – como o Chat GPT da Open AI – tornou-se tristemente famoso logo após ficar online por inventar elaboradas falsidades e apresentá-las como verdadeiras, e o CEO da Google, Sundar Pichai admitiu que, embora estas “alucinações” pareçam ser endémicas entre os modelos de conversação baseados em inteligência artificial, ninguém sabe, ou não quer saber, o que as causa ou como manter o sistema estabilizado e honesto.

Pior ainda: o Genesis pode marginalizar as notícias reais se a Google encorajar a sua adopção, ajustando os seus algoritmos de pesquisa para dar prioridade ao conteúdo gerado por IA, como o radialista Gabe Rosenberg tweetou em resposta ao artigo do New York Times.

 

 

Várias agências noticiosas de renome já experimentaram a utilização de IA nas suas redacções, com resultados pouco inspiradores. O BuzzFeed passou da utilização de IA para gerar questionários personalizados a produzir dezenas de artigos de viagem estereotipados e anunciar que todo o conteúdo seria gerado por IA em menos de seis meses, apesar de ter prometido aos seus redactores, em Janeiro, que os seus empregos estavam seguros. O grupo Gizmodo, que mantém dezenas de publicações online, está a despedir “jornalistas” em larga escala, enquanto transita para redacções completamente baseadas em algoritmos de rede neuronal.

No início deste ano, a CNET foi apanhada a passar artigos escritos por IA como conteúdo humano e a utilizar a IA para reescrever artigos antigos, a fim de aumentar artificialmente as suas classificações nos motores de busca.

Apesar destes desastres, a OpenAI, a empresa responsável pelo ChatGPT, começou recentemente a assinar acordos com grandes organizações noticiosas, como a Associated Press, para incentivar a adopção da tecnologia nas redacções.

É verdade que o jornalismo mainstream contemporâneo tem a qualidade técnica e criativa que era de referência num gabinete de propaganda da República Socialista Soviética do Turquestão. Mas dá nitidamente a impressão que, depois de despedidos os activistas que agora passam por jornalistas, vamos ficar ainda pior servidos. Se possível. Até porque da mesma maneira que não fazemos amizades com máquinas, também convém que os nossos inimigos sejam humanos.