Cartazes com a mensagem “O Islão tem razão em relação às mulheres”, que já circulava anteriormente em chats mais ou menos obscuros da web, começaram a aparecer em pequenas cidades da Irlanda e do Estado do Massachussets, nos EUA. E a esquerda, através dos seus amplificadores da comunicação social corporativa, começou de pronto a rotular a iniciativa como uma acção de extrema-direita, que é uma forma impedir que a afirmação seja sujeita a análise ou até a uma crítica racional. Porque na verdade, os neoliberais não sabem como desmontar esta genial provocação.
É claro que provocar a esquerda woke se tornou um passatempo popular e até de fácil realização, dadas as suas fragilidades conceptuais e os seus ridículos pressupostos. Raramente, porém, aparece algo que, mesmo sendo facilmente descartado como extremismo sexista, é tão notavelmente incisivo e adequado que se eleva não apenas ao nível da sátira, mas da desobediência civil.
Pensemos nos cartazes de Posie Parker, que citam muito simplesmente a definição do dicionário da palavra “mulher”. O poder de tais actos advém de dois eixos fundamentais. Em primeiro lugar, reconhecem – normalmente com uma simplicidade irredutível – que algo que não era preciso dizer há um momento atrás se tornou subitamente indizível. Em segundo lugar, a indignação que provocam não vem de qualquer epíteto, caricatura ou insulto, mas sim da coragem de chamar a atenção do público para um acto de dissonância cognitiva em que todos nós estamos envolvidos, mas que preferimos não reconhecer.
O resultado é que aqueles que tentam explicar porque é que o acto é ofensivo acabam simplesmente por se enredar em intrincados nós retóricos, revelando rapidamente a inconsistência do seu raciocínio e o carácter espúrio da sua crítica. A frustração de não conseguir destruir axiomas irredutíveis parece gerar ainda mais raiva na turba woke, que é invariavelmente acompanhada por políticos, jornalistas e outras figuras públicas, ansiosos para ver o herege ser transformado num exemplo.
No seu melhor, estes actos de desobediência pública mostram que no século XXI a liberdade de expressão passa até por ter a ousadia de dizer que dois mais dois são quatro.
O exemplo de dissidência perfeitamente elaborada de que trata este texto é claramente ilustrado no vídeo do noticiário televisivo local de Massachusetts, que mostra algumas reacções à afixação de folhas de papel brancas com a afirmação “O Islão tem razão em relação às mulheres”. As reacções são profundamente reveladoras. Ninguém consegue indicar claramente por que razão se opõe à declaração – de facto, ninguém parece opor-se a ela. No entanto, a maioria parece sentir-se ofendida com a afirmação, ainda que de forma reticente.
A razão do seu dilema é suficientemente óbvia para qualquer pessoa que tenha estado atenta. A sociedade ocidental conseguiu convencer-se (pelo menos em público) de que declarações que critiquem qualquer aspecto do Islão constituem, por definição, fanatismo xenófobo. Em consequência, as sociedades ocidentais decidiram efectivamente aplicar as restrições islâmicas à blasfémia e chamaram-lhe “tolerância”.
A tensão de se conformar com esta mentira é evidente nas tentativas desastradas dos entrevistados para explicar as suas objecções. Acreditam que o Islão tem razão em relação às mulheres? Em caso afirmativo, porquê a objecção? Acreditam que o Islão está errado em relação às mulheres? Em caso afirmativo, em que sentido é que a declaração é um ataque ao Islão ou aos muçulmanos? Acreditam que o autor do cartaz está a ser irónico? Nesse caso, a objecção só pode ser a de que o autor é culpado de um crime de pensamento ao afirmar que “dois e dois são cinco” com insuficiente sinceridade. Ou será que se preocupam com o facto de serem culpados de um crime de pensamento por se aperceberem da ironia?
Por outras palavras: como é que a esquerda woke convive com o feminismo mais radical que se possa imaginar e com a veneração dos códigos culturais islâmicos, profundamente misóginos? Será este equilíbrio sustentável? Não. Claro que não. Uma simples folha A3 com cinco singelas palavras faz cair o impossível edifício, com estrondo monumental.
Na verdade, a origem da objecção está num falso consenso: o de que todos tínhamos concordado em fingir que não tínhamos opiniões negativas sobre o Islão. Essa premissa obriga-me a concordar com o cartaz, o que não posso fazer, ou a discordar dele, o que não me é permitido.
O resultado é uma confusão total por parte dos entrevistados sobre como sinalizar a sua obediência à mentira. Uma mulher, que teve dificuldade em explicar porque é que achou os cartazes “perturbadores”, arrancou-os, levou-os à polícia e alertou as redes sociais sobre a circunstância, ainda assim. A irracionalidade do seu comportamento é uma espécie de logótipo das contradições que vibram submersas no pântano da ideologia woke e que dificultam o triunfo da “diversidade” que as elites globalistas nos querem enfiar pelo cérebro a dentro.
A situação é uma bela inversão da analogia apresentada no icónico ensaio “O Poder dos Impotentes” de Václav Havel, em que um merceeiro coloca um cartaz na sua montra com o célebre chavão do Manifesto Comunista, “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos”. Em vez de ser o resultado de qualquer convicção ideológica profunda, o único objectivo do cartaz é assinalar obediência à autoridade. O lojista não é comunista. Nem operário. Nem proletário. Só quer ser deixado em paz pelo estado bolchevique.
Na Checoslováquia sovietizada de 1978, era um cartaz colocado na montra de uma mercearia. Nos subúrbios de Boston e nas vilas da Irlanda de 2019, são expressões confusas de “ofensa” que não podem ser identificadas ou explicadas, mas que devem, no entanto, ser condenadas e comunicadas à polícia. A confusa divagação não é surpreendente, uma vez que, como explica Havel, a submissão à conformidade ideológica em troca de uma vida tranquila só pode ser conseguida abdicando da razão.
Esse claudicar da virtude intelectual esmaga o cidadão ideologicamente obediente, porque reduz a vida a uma existência puramente material, em que a integridade moral e a dignidade humana têm de ser sacrificadas para manter o Estado longe de nós e para nos mantermos num certo nível de subsistência. Este é um destino que Havel sugeriu que poderia um dia acontecer ao Ocidente se alguma vez sucumbisse à “profana trivialização da humanidade”, necessária para viver dentro de uma mentira em vez de a desafiar. Com a polícia a bater à porta dos cidadãos para “verificar o seu pensamento” e com pessoas a perderem regularmente empregos devido a publicações nas redes sociais, quem pode dizer que não chegámos a esse ponto?
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