Space X, Twitter X, Tesla Model X… Só a Neuralink escapa à obsessão de Elon Musk pela letra cruzada. Ou talvez não, porque o projecto da empresa que quer introduzir microchips no cérebro humano passa pela criação de uma nova espécie: O Homo X.
Em Maio deste ano a US Food and Drug Administration concedeu à Neuralink uma licença para iniciar testes em humanos com chips cerebrais.
Musk festejou a notícia no Twitter, que agora é X. A empresa tem vindo a lutar por este momento há seis anos, mas a FDA emitiu alguns avisos de que a Neuralink terá de resolver alguns problemas técnicos, incluindo a segurança das baterias de lítio contidas no dispositivo. Nem uma advertência, porém, sobre o contexto ético do projecto.
E não é que toda a gente esteja entusiasmada com este desenvolvimento. Os chips cerebrais parecem ser um momento de encruzilhada para a humanidade, um ponto em que as comportas podem abrir-se para uma série de consequências indesejadas. Embora seja apenas sensato atribuir este avanço tecnológico à filosofia distópica trans-humana promovida por entidades como o World Economic Forum, há complexidades na tecnologia dos chips cerebrais, e divergências entre a visão de Musk e Schwab, que vale a pena considerar.
A suspeitas de trans-humanismo não são apenas produto de teorias da conspiração, considerando as implicações futuras da tecnologia que incluem “telepatia”, por exemplo. E se bem que Elon Musk se considere, como disse numa entrevista em Abril a Tucker Carlson, um”especista”, a verdade é que a Neuralink tem objectivos de transformação radical da condição humana. Há uma linha, fina como o gume de uma faca de preparar sushi, entre o desejo de resolver problemas médicos e a vontade de expandir as capacidades cognitivas, sensoriais e motoras de seres humanos saudáveis. Musk dança uma perigosa valsa na espessura dessa lâmina.
Os resultados do avanço da medicina e do trans-humanismo são superficialmente semelhantes, mas eticamente muito diferentes. Consideremos uma pessoa com pernas robóticas. Se essa pessoa foi vítima de um acidente terrível, a intervenção médica não deriva de um conceito de trans-humanismo, mas se uma pessoa cortar as pernas para instalar um substituto robótico – isso é trans-humanismo.
De volta ao mundo real, parece que a tecnologia Neuralink pode ter uma função mais próxima dos dispositivos médicos, como os pacemakers. Como Musk explicou, o objectivo do chip cerebral é ajudar as pessoas com uma vasta gama de problemas médicos, prometendo oferecer esperança a quem sofre de autismo, insónia, perda de memória e de audição, depressão, obesidade e problemas mentais graves que, até agora, têm desafiado as ciências médicas. A conta da empresa no Twitter afirmou que:
“Este é o resultado de um trabalho incrível da equipa da Neuralink em estreita colaboração com a FDA e representa um primeiro passo importante que permitirá um dia que a nossa tecnologia ajude muitas pessoas”.
A segurança desses testes em humanos será observada de perto, já que os testes em animais não correram nada bem. É até de espantar que a Neuralink tenha conseguido autorização federal para testar em humanos uma tecnologia que, nos testes com animais correu assim tão mal.
Em fevereiro de 2022, o Economic Times noticiou que o teste do chip cerebral da Neuralink “matou 15 macacos em 23”, tendo a empresa sido acusada de causar “sofrimento extremo” aos animais.
“Um grupo de defesa dos direitos dos animais, o Comité de Médicos para uma Medicina Responsável, apresentou uma queixa oficial ao Departamento de Agricultura dos EUA na quinta-feira, alegando que os macacos experimentaram um sofrimento extremo em resultado de cuidados inadequados com os animais e dos implantes experimentais altamente invasivos durante as experiências”.
A Neuralink afirmou que apenas 8 animais foram submetidos a ‘eutanásia’.
Um destes macacos foi apresentado num vídeo do YouTube a jogar “Pong”. Isto aconteceu durante um ensaio com os chips bluetooth, em que os macacos cumpriam o jogo utilizando apenas a mente, com os chips a antecipar os movimentos dos braços através de ondas cerebrais monitorizadas.
Conforme noticiado pela CNN Business:
“A empresa disse que isto foi conseguido depois de o chip Neuralink ter alimentado a informação dos neurónios do macaco para um descodificador, que foi depois utilizado para prever os movimentos de mão pretendidos pelo animal – permitindo que a saída do descodificador fosse utilizada para mover o cursor.”
Em 2020, Musk referiu-se ao projecto dizendo:
“Acho que vai dar-vos a volta à cabeça. É como um monitor electrónico de fitness no vosso crânio, com fios minúsculos”.
Durante esse tempo, a empresa apresentou um porco com um implante que monitorava a actividade cerebral do animal. Musk comentou:
“Os sinais sonoros que estão a ouvir são sinais em tempo real. O futuro vai ser estranho. Mas quero ser claro, estamos a trabalhar em estreita colaboração com a FDA. Vamos ser extremamente rigorosos. Vamos exceder significativamente as directrizes da FDA em matéria de segurança. Vamos tornar este projecto tão seguro quanto possível”.
Isto foi antes dos macacos começarem a morrer. E quando isso aconteceu, a Neuralink tentou limpar a má imagem:
“A utilização de cada animal foi amplamente planeada e considerada para equilibrar a descoberta científica com a utilização ética dos animais. Dois animais foram submetidos a eutanásia nas datas finais planeadas para recolher dados histológicos importantes, e seis animais foram submetidos a eutanásia por recomendação médica do pessoal veterinário da UC Davis.”
É compreensível que Elon Musk esteja à procura de descobertas científicas que resolvem patologias cruéis e duradouras que a medicina moderna ainda não conseguiu resolver. E até que, como na verdade fazem a generalidade das farmacêuticas, mate alguns animais no processo. O que é bizarro é a alegria com que se diz que o “futuro vai ser estranho”, ou que esses chips cerebrais podem tornar a “linguagem obsoleta em 5 a 10 anos”.
A este propósito, afirmou o magnata:
“Acho que, em princípio, serás capaz de comunicar muito rapidamente e com muito mais precisão, não tenho certeza do que aconteceria com a linguagem, mas numa situação como essa, seria como a matriz. Queres falar um idioma diferente? Não tem problema. Basta descarregar o programa.”
O dispositivo, do tamanho de uma moeda pequena, inclui 3.000 eléctrodos que são conectados a cabos flexíveis mais finos que um cabelo humano. O objectivo é monitorar a actividade cerebral. Feliz ou infelizmente, consoante a óptica com que observamos os desenvolvimentos da Neuralink, o funcionamento do cérebro humano permanece misterioso, e a maior parte do conhecimento em neurociências é ainda composto por generalidades e suposições, e não por uma compreensão detalhada da sua mecânica.
Em 2020, Ari Benjamin, da Universidade da Pensilvânia, sublinhou esse problema:
“Assim que tiver as gravações, a Neuralink vai tentar descodificá-las e um dia atingirá a barreira que é nossa falta de compreensão básica de como o cérebro funciona, não importa quantos neurónios sejam registados. Descodificar metas e planos de movimento é difícil quando não entendemos o código neuronal através do qual essas coisas são processadas.”
E de volta ao trans-humanismo: Se a tecnologia de Musk for usada apenas para criar novas soluções terapêuticas, podemos celebrá-la da mesma forma que elogiamos a invenção dos aparelhos auditivos, por exemplo. No entanto, se Musk ceder à tentação de fazer com que o cérebro aja em simbiose com tecnologias de inteligência artificial, proporcionando uma espécie de upgrade à fisiologia humana, estaremos já bem dentro do trans-humanismo, eticamente duvidoso e existencialmente apocalíptico.
Independentemente das suas boas intenções, em que temos aparentemente que confiar, e do fascínio de Musk pela inovação tecnológica, que faria um governo autoritário se pudesse aceder remotamente às ondas cerebrais dos cidadãos? Já é nefasto quanto baste ser assediado pela polícia por gostar do post errado no Facebook. A tecnologia de Musk criaria inadvertidamente um futuro distópico em que as pessoas seriam preventivamente condicionadas por alimentarem pensamentos errados.
E é difícil de crer que um tecnólogo brilhante como o dono da Neuralink nunca tenha pensado nisto. Musk é um homem que tem defendido corajosamente a liberdade de expressão – isso ninguém lhe tira – mas as suas aventuras neste campo da ciência frankensteiniana poderão muito facilmente cair nas mãos dos tiranos deste mundo, que as iriam rapidamente converter em instrumentos de aniquilação do livre arbítrio, num mundo onde não haveria lugar para um cidadão se esconder do seu governo, nem mesmo dentro da sua cabeça.
Em algum momento, aqueles que estão a fabricar o futuro devem parar de se perguntar se podem fazer algo, e começar a perguntar se o devem fazer. Ou por outras palavras: qualquer engenheiro do século XXI, antes de criar seja o que for, deve perguntar-se:
“O que faria Justin Trudeau com isto?”
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