“Tenho visto pessoas negras a desempenhar papeis nas comédias de Shakespeare. Só ainda não vi um branco na pele de Otelo.”
Sergei Lavrov . Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa.

 

A nova série documental da Netflix, “Queen Cleopatra”, tem sido criticada por uma grande variedade de publicações, incluindo o Contra, pela sua representação para-histórica da famosa monarca egípcia como sendo de pele escura. Este tipo de filosofia de casting, em que personagens que deviam ser brancos são interpretados por negros, está na moda em Hollywood e não faltam casos ridículos como, para citar apenas dois exemplos recordistas, ambos produzidos pela Netflix, o da série “Vikinks Valhalla” em que a líder de Kattegat, a cidade mítica das tribos norueguesas, é interpretada por uma actriz que deve ter nascido no Congo; e o da série “Troy: Fall of a City”, em que o louro Aquiles é personificado por um actor negro.

A diferença de “Queen Cleopatra”, no entanto, está na sua pretensão de constituir verdade histórica. A série é apresentada como um documentário dramatizado, com entrevistas a supostos académicos e historiadores que promovem a ideia de que a última monarca do antigo Egipto era de facto negra.

Consequência do embuste: o rating da série deve estar perto de ser o mais baixo da história da televisão.

A Netflix contou com a produção executiva da infeliz mulher do infeliz Will Smith, Jada Pinkett Smith, e isso já diz muito. Mas talvez mais fundamental para esta questão é a colaboração de Shelley Haley, professora do Hamilton College, especializada em ver os clássicos através da lente do feminismo negro e da teoria crítica da raça. Também lidera a organização mais importante neste domínio, a Sociedade de Estudos Clássicos (SCS). A SCS tem estado na linha da frente das “guerras da história” – a procura esquerdista de rever a história de acordo com os mandatos da “equidade”. Promove a “educação anti-racista” e o “Queering the Past”. Este programa de transformismo radical sobre a realidade destina-se a reformular o passado para apaziguar a turba woke do presente, ou seja: faz política em vez de fazer história.

A abordagem de Haley à definição de Cleópatra como negra insere-se nesta agenda mais alargada e foi objecto de um artigo do New York Times (quem mais podia defender esta fraude?) intitulado “Fear of a Black Cleopatra”. Os fundamentos conceptuais da série recebem um tratamento favorável por parte dos autores do artigo, que defendem não só a escolha de elenco da Netflix, mas a afirmação de que Cleópatra era ela própria negra, se não etnicamente, então culturalmente.

O artigo expõe o cerne das afirmações de Haley sobre Cleópatra: a ideia da chamada “Cultural Blackness” (literalmente “negritude cultural”). Este conceito é explicado da seguinte forma pela Dra. Haley:

“Quando dizemos, em geral, que os antigos egípcios eram negros e, mais especificamente, que Cleópatra era negra, afirmamo-los como parte de uma cultura e de uma história que conheceu a opressão e o triunfo, a exploração e a sobrevivência”.

O que ela quer dizer é que não nos devemos limitar a considerar apenas as representações do aspeto físico de Cleópatra ou as descrições da sua ascendência. Podemos também utilizar o que sabemos sobre a sua vida, reinado e resistência para compreender a sua raça como uma identidade cultural partilhada.

A ideia de que Cleópatra era “culturalmente negra” não só é profundamente redutora, como também é definida de forma tão ampla que se torna inútil na análise histórica. A cor da pele como factor de opressão e exploração ignora os grandes êxitos e correlacionados crimes da história africana, incluindo Shaka Zulu, que escravizou inúmeras populações, ou Mansa Musa, sem dúvida o monarca mais rico da história universal. Este enfoque míope que define as pessoas de pele negra como vítimas perpétuas, retirando o poder de acção às sua figuras do passado e do presente, rebaixa ou olvida a história das realizações e da cultura negras, ignorando feitos impressionantes em favor de uma visão simplista da raça e da escravatura. Isto presta um péssimo serviço à história dos povos africanos e da sua presença no mundo.

A ideia de que a cor da pele é cultural, definida como a superação da opressão, é tão ampla que abrange quase todas as culturas da Terra. Os russos ultrapassaram a opressão quando se livraram do jugo mongol no século XIV; os alemães fizeram-no quando expulsaram os intrusos napoleónicos das suas terras fragmentadas em 1814; os americanos derrubaram um governo imperial repressivo com a vitória em Yorktown em 1781; os chineses escaparam à opressão quando o Japão imperial foi expulso do seu território no final da Segunda Guerra Mundial; os judeus ultrapassaram os desafios do ódio e da intolerância mais vezes do que é possível contar. Quererá isso dizer que todos estes grupos são actualmente “culturalmente negros”? Poderão os afro-americanos reivindicar como seu o sofrimento dos judeus na Rússia czarista? E a infame Violação de Nanquim? Será que isso vai ser reconfigurado como um crime de ódio anti-negro? E porque é que isto não funciona nos dois sentidos?

Os autores abordam esta última preocupação, claro, dizendo:

Reconhecer Cleópatra como culturalmente negra não é fingir que a cor da pele não tem significado agora – à maneira de figuras recentes como Rachel Dolezal e Jessica Krug, que reivindicaram uma identidade cultural que não era a sua. Na nossa sociedade, a raça e o racismo estão profundamente ligados à cor da pele e a outros traços físicos herdados. Não podemos compreender as formas modernas de opressão sem entender como a diferença fenotípica contribui para elas, e não podemos legitimamente reivindicar uma história racial sem a termos vivido. Cleópatra viveu-a. E é essa experiência, e não os seus atributos físicos, que deve determinar a forma como imaginamos a sua vida.

Mas será que Cleópatra viveu efectivamente essa experiência racializada? Terá sido ela “culturalmente negra”? Se se levar a sério a História, a resposta é um retumbante não.

De facto, Cleópatra era um produto de condições quase exactamente opostas às definidas como “culturalmente negras”. A última rainha egípcia não era alheia à exploração, mas ela era a repressora, não a reprimida. Apesar do seu conhecimento da língua local, Cleópatra não era uma egípcia vulgar. Era monarca absoluta de linhagem grega que teve origem na ocupação do Egipto por Alexandre, o Grande.  Os soberanos do antigo Egipto tinham um poder absoluto e divino, incomparável com as figuras políticas modernas; embora o culto da personalidade e a vontade autoritária nas lideranças actuais do Ocidente seja deveras preocupante, os chefes de estado contemporâneos não se apresentam como a encarnação literal de Deus nem mandam decapitar inimigos políticos. Assumindo-se como a deusa Ísis, um facto que o Times, de alguma forma, distorceu como parte de uma narrativa de opressão em vez de narcisismo megalómano, Cleópatra mandava e desmandava a seu belo prazer, e só excepcionalmente teve que obedecer a um poder maior que o seu: o de Júlio César, por exemplo. A monarca possuía milhares de escravos e podia comandar a obediência de qualquer cidadão egípcio. Orpimida é que ela não era.

Os autores recorrem a representações negativas da cultura egípcia helenizada, feitas pelo escritor romano Propércio, para afirmar que a descendente da dinastia ptolemaica era desprezada e rebaixada pela cultura dominante. Um breve olhar sobre outras passagens de escritores antigos põe em causa esta fonte. O Egipto era a jóia e o celeiro do antigo mundo mediterrânico, rico em recursos naturais, população e bens transaccionáveis, razão pela qual os macedónios o conquistaram nos anos 300 a.C. e os romanos, no tempo de Cleópatra, estavam tão empenhados em anexá-lo. Se Ceopatra dosse desprezada pelo Império, Julio César não lhe tinha feito um filho e Marco António não tinha deitado tudo a perder, inclusivamente a sua vida, pela paixão intensa que lhe dedicou.

Cleópatra, como rainha do Egipto, era a proprietária final dessas riquezas e não as utilizou propriamente para elevar os seus súbditos. Em vez disso, utilizou-as para cortejar os generais romanos, numa tentativa de vender o seu país, mantendo o seu próprio poder e prestígio. O conceituado escritor romano Plutarco descreve estas imensas riquezas no seu livro “Vidas”, especificamente na sua “Vida de António”:

“Cleópatra navegou pelo rio Cídano acima, numa barcaça com popa dourada e velas de púrpura estendidas, enquanto remos de prata batiam ao ritmo da música de flautas, pífaros e harpas. Ela própria estava deitada sob um dossel de tecido de ouro, vestida como Vénus num quadro. No dia seguinte, António convidou-a para jantar, e estava muito desejoso de a superar tanto em magnificência como em engenho; mas descobriu-se completamente derrotado em ambos.”

Esta passagem descreve em pormenor como Cleópatra era absurdamente rica e elitista, de tal forma que envergonhava um dos principais líderes romanos da época, membro do segundo Triunvirato, com a sua relativa pobreza e falta de sofisticação. Utilizou estas riquezas para promover o seu próprio poder e tentar assegurar a sobrevivência da sua dinastia em detrimento da do Egipto. Esta abordagem saiu-lhe pela culatra, terminando com o seu suicídio por envenenamento, após a derrota de António nas batalhas de Áccio e Alexandria, em 31 e 30 a.C., respectivamente. Mas esta perda e a sua morte auto-infligida não fazem de Cleópatra um ícone dos oprimidos; de facto, o subsequente domínio romano da província foi menos arbitrário e caprichoso do que o seu.

A ideia de cor da pele como produto cultural de Haley e o artigo do Times que reproduz este conceito espúrio não só falham dramaticamente no caso de Cleópatra, como também falham como teoria histórica global, ao reduzir todas as etnias e culturas à experiência da opressão, limitando a compreensão abrangente e profunda dos factos históricos.

Desta forma, serve dois objectivos da esquerda: obrigar o passado às narrativas do presente e privilegiar os académicos negros na discussão destes tópicos. Ao criar uma definição que faz da cultura uma raça  – que, se incluir Cleópatra, abrange quase tudo – este problema é invertido. Sob esta nova rubrica, os académicos negros seriam os verdadeiros especialistas e os outros seriam marginalizados.

Em suma, tudo isto é parte integrante do movimento woke, da equidade forçada e da discriminação “positiva” e deve ser tratado como tal. Os académicos que defendem esta treta deviam ser corridos à bengalada, as suas universidades arrasadas e, como certa vez em Cartago, salgado o chão onde foram erguidas, para que lá não volte a prosperar semelhante ameaça à civilização.