Na semana passada, a guerra civil no Sudão começou de repente a aparecer nos noticiários internacionais. Como sempre, olhar para um mapa ajuda a perceber o que se está a passar. O Sudão faz fronteira a norte com o Egipto e tem costa a este para o Mar vermelho. O país está em convulsão desde 2019 e o actual governo está entregue, se não formalmente, de facto, ao general Abdel Fattah al-Burhan, que firmou com a Rússia um tratado que permite aos navios de guerra russos, inclusivamente unidades com armamento nuclear, terem uma base operacional no Mar vermelho. E os russos gostam de portos de água quente como ninguém, já que no seu território têm poucos. Os americanos, por seu lado, não gostam mesmo nada que os russos façam base num mar de importância estratégica, com acesso directo à península arábica e ao tráfego marítimo do canal do Suez.

Aos primeiros rumores de uma acordo entre o Sudão e a Rússia, os EUA nomearam um embaixador para o país pela primeira vez nos últimos 25 anos. E o embaixador americano, mal pisou solo sudanês, apelou ao governo local para não firmar o tratado. Como Abdel Fattah al-Burhan fez orelhas moucas ao apelo, o Secretário de Estado norte-americano Anthony Blinken começou de pronto a maquinar uma mudança de regime, declarando que os EUA prestariam o apoio necessário para um governo transitório de base civil e imiscui-se em negociações entre os movimentos pro-democracia e as lideranças militares. Logo depois do governo concluir o tratado com a Rússia, os EUA enviaram 200 milhões de dólares de “ajuda humanitária” para o Sudão, e a infame Victoria Nuland, Subsecretária de Estado para os Assuntos Políticos do Regime Biden e velha raposa de mudanças de regime por todo o mundo (vale a pena visitar o currículo tenebroso desta senhora), visitou o Sudão para discutir “caminhos para a democracia” (leia-se: uma mudança de poderes regimentais que anule o acordo com a Rússia).

Nuland não parecia estar a fazer grandes progressos porque o Sudão é na verdade um território intratável quando, coincidentalmente e de certeza sem qualquer influência das suas maquinações, rebenta a guerra civil entre as forças militares no governo e um grupo paramilitar renegado.

O Sudão é o novo palco da actual guerra por procuração entre a Rússia e o Ocidente, que faz lembrar o conflito sírio. Os media fecharam os olhos ao problema interno no Sudão com a ideia, correcta, de que este género de levantamentos é comum neste martirizado país e a convicção, errada, de que o banho de sangue seria de qualquer forma irrelevante para a esfera ocidental.

Mas entretanto alguém numa redacção da imprensa corporativa descobriu o envolvimento da Rússia e o mundo começou logo a ser informado sobre o que estava a acontecer no país africano e o Kremlin foi de imediato acusado de todo o tipo de barbaridades. A propaganda ocidental alega que o oligarca russo Yevgeny Prigozhin está a fornecer armas e “ajuda humanitária” ao governo sudanês, sob a alçada do Grupo Wagner, uma organização paramilitar russa. Prigozhin afirma que a Rússia não está envolvida com o Sudão há dois anos, mas a comunicação social mainstream afirma o contrário. Ninguém se preocupava com o povo do Sudão até ao momento em que se soube que Rússia tinha interesses na região, e agora há um clamor internacional com bandeiras falsas em abundância. E sobre a influência dos americanos neste conflito, que também ofereceram “ajuda humanitária” com fartura ao mesmo governo e que, quando viram os seus esforços traídos, sabe-se lá que outros benefícios prestaram ao movimento rebelde, que se revoltou com grande sentido de conveniência e no timing certo para os interesses de Washington, nada é reportado.

Anthony Blinke não se absteve de dizer à imprensa:

“Estamos profundamente preocupados com o envolvimento do grupo Prigozhin, o Grupo Wagner, no Sudão. Está presente em tantos países diferentes de África – um elemento que, quando está envolvido, simplesmente traz consigo mais morte e destruição.”

Porque os Estados Unidos da América, quando se envolvem em assuntos externos, só trazem paz e prosperidade, não é? Afeganistão. Síria. Iraque. Somália. Líbia. É só casos de sucesso e felicidade dos povos nativos.

O Grupo Wagner opera em vários países de África e até tem uma base naval no Mar Vermelho que foi criada em 2019. Moscovo obteve acesso a recursos naturais, bases militares e localizações de satélites, bem como a negócios de armas, em troca do fornecimento de mercenários através do Wagner. Mais importante ainda, a Rússia tem acesso às minas de ouro do Sudão. O Ocidente está a acusar a Rússia de utilizar as receitas destas minas para financiar a guerra na Ucrânia (como se esse fosse um pecado inédito, que nenhuma potência alguma vez se atreveria a cometer) . Há também relatos de mercenários russos a cercar o porto do Sudão e há alegações de que estão a impedir a evacuação das pessoas.

Mas entretanto, soubemos pela Organização Mundial de Saúde que o Ocidente, vá-se lá saber porquê, mantém vários laboratórios biológicos a funcionar no Sudão, com financiamento americano, que foram entretanto tomados por militares locais. No tom alarmista que está no seu ADN e como já tinham feito na Ucrânia, burocratas da Nações Unidas alertam agora para um “enorme risco biológico”, já que “não é possível gerir adequadamente os materiais que são armazenados no laboratório para fins médicos.”

Mas quem é que achou uma boa ideia instalar, num país tão estável como uma jangada numa tempestade tropical, laboratórios de pesquisa em agentes patogénicos? E que mania é esta de financiar pesquisas deste género em países estrangeiros? Os EUA financiaram o laboratório de Wuhan. Financiaram 26 laboratórios semelhantes na Ucrânia. E agora no Sudão. É um investimento estranho, considerando que a China é um rival, e a Ucrânia e o Sudão são países que apresentam enormes riscos de segurança.

A poliomielite, o sarampo e a cólera são as únicas doenças que a imprensa corporativa está a reportar como objectos de pesquisa nestes laboratórios. Estas doenças têm programas de vacinação e este poderia ser um método para incentivar a vacinação da população mundial, mais uma vez. É também uma desculpa para que nações estrangeiras invadam o país sob a premissa da saúde global, escamoteando a real intenção que é a de expulsar a Rússia do país. A questão da emergência biológica dá todos os sinais de constituir uma falsa bandeira.

Especulamos, claro, mas nos tempos que correm, quanto mais especulativas são as teorias, mais acertadas se mostram.

Seja como for, é evidente que no Sudão se sacrificam vidas humanas em função de interesses que transcendem largamente o âmbito existencial, económico, social e político dos sudaneses. E esta guerra civil é um claro produto da guerra fria, versão 2.0, que testemunhamos neste início do Século XXI.