Não é por acaso que aquele que foi, muito provavelmente, o mais inteligente dos portugueses, tenha dedicado grande parte da sua vida a criar um plano de fuga. Como Henrique, todo o lusitano que se preze tem o secreto ou aberto sonho de se evadir de Portugal. Sempre achámos e continuamos a achar que o sétimo céu se esconde num canto recôndito do mundo. Como a D. João II, inquieta-nos esta pequenez marginal, esta solidão perante o mar. Como Milton, sonhamos com a queda de Lúcifer, mas sabemos intimamente que Lúcifer não vai cair em território nacional. O paraíso perdido está algures do outro lado da fronteira. Ou do outro lado da praia.
São escusadas as demonstrações estatísticas e escrevo só a partir da minha experiência pessoal: conheço gente vária que viveu em África e que nunca conseguiu recuperar à infâmia do regresso. Conheço gente outra que foi acampar para a Escócia e por lá ficou, que foi inventar utopias na Catalunha, que se escapou para negócios complicados em Moçambique, que foi trabalhar para França, que foi vender vinho para Angola, que foi estudar para os Estados Unidos, que foi ganhar dinheiro para a África do Sul. Conheço peregrinos muitos que seguiram pelo ancestral êxodo de Macau e que, retornados também, sonham e anseiam por voltar àquele bocadinho chinês de terra portuguesa. Conheço malta com família em Sidney, Newark, Ontário, Instambul, que trabalhou em Roma, que viveu em Liverpool, que desapareceu para o deserto a propósito de ir comprar tabaco (só um português poderia chegar a Marrocos com o pretexto dos cigarros).
Conheço em excesso pessoas da minha terra, do meu bairro, da minha vida que deram de fuga. Foram para Madrid, foram para Londres, foram para Boston, foram por onde as estradas do mundo esquecem o seu destino. E o que não me falta de gente em trânsito é pessoal que foi para o Brasil, claro. Mas também para a Argentina. Para o Chile. Para a Venezuela. A diáspora é de tal forma o quinto império deste meu bom povo que de portugueses está o mundo repleto. A acontecer, num determinado momento, num qualquer lugar tirado à sorte pela lotaria dos deuses, um desastre grande ou um supremo momento de júbilo, estará lá – asseguro-vos – pelo menos um tuga por testemunha! Kuala Lumpur, Nairobi, Cidade do México, Genebra, Copenhaga, Cairo, Kathmandu. Não interessa a toponímia, há-de por deus encontrar-se por lá um zé, um antónio, um francisco e, com toda a certeza, uma maria. A verdade é que o português não gosta de Portugal. Até lhe é alérgico: porque raio de amor à pátria vai o Vasco contra ventos e correntes, contra a lógica e o bom senso, inventar um caminho marítimo para a índia? Porque, convenhamos, devia já estar fartinho do seu país.
Como Eça de Queiroz (ele próprio um diplomata, portanto fugitivo), os portugueses acham que a nação que os pariu é mal frequentada e doentia. Os que partem sentem-se melhor, os que ficam são condenados ao serviço público de saúde, o que também não é nada bom (e quando os cuidados públicos nacionais são qualitativamente superiores àqueles instalados nos destinos da fuga, a ironia explode).
Reparem: eu conheço portugueses que preferem residir no centro de Nova Deli do que em Campo de Ourique. Que defendem a gastronomia de Manchester. Que movem influências improváveis e activam cunhas remotas por um emprego do outro lado do mundo, o mais distante que seja possível por cartografia, o mais antípoda que poderá permitir a ciência geográfica e a criatividade do emigrante. É preciso sair daqui. A todo o custo. Qualquer lugar obscuro e suspeito, qualquer bocado de terra infernal e selvagem, qualquer quimera de supermercado serve de combustível ao motor desta incontornável, permanente e obsessiva volição.
Um dia destes fico para aqui sozinho.
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