Gustav Rau (1922 – 2002) foi um médico e filantropo alemão, cuja colecção de arte envergonha muitos museus. No seu espólio encontramos obras de grandes mestres como Canaletto, Fran Angelico, Degas, Renoir, Monet, Cranach e Fragonard.
Algumas peças desta propriedade monumental foram exibidas em Portugal, no Museu Nacional de Arte Antiga, no já longínquo ano de 2006.

 

1 . FRA ANGELICO . S. Miguel

 

1424-1425, folha de ouro sobre madeira, 35.5×14 cm

Um dos primeiros trabalhos conhecidos de Fra Angelico (1395-1455), o beato dominicano que, entre Roma e Florença, soube encontrar o caminho difícil e peregrino do Gótico para o Renascimento.

A delicada figura do Arcanjo S. Miguel parece suspender-se, com leveza insustentável, sobre o dragão fatalmente trespassado. A anca inclina-se, quase num trejeito feminino, para ganhar um movimento ligeiro e gracioso.

A representação é substancial para além da sua extraordinária beleza. Em 1424, a pintura de retábulos era, com a excepção do trabalho de Giotto, composta por figuras rígidas e estáticas, retratadas segundo os medievos canônes da mitologia cristã. Este arcanjo efeminado e etéreo, despido de armaduras e trajando um sedoso exemplar da alta costura florentina, debroado a ouro, todo ele fleuma e elegância, é já Fra Angelico a interpretar os tempos. A adivinhar um renascimento. E a pintar em conformidade.

 

 

 

 

2 . GUIDO RENI . David Decapita Golias

 

1606-1607, óleo sobre tela, 174.5×133 cm.

 

Guido Reni (1575-1642) é um daqueles pintores ecléticos e comprometidos que banalizaram o barroco e, nesse sentido, não é propriamente um vanguardista. Nascido e criado em Bolonha, é em Roma, a soldo dos papas, que faz o seu melhor trabalho; nomeadamente o fresco de Casino dell’Aurora, nos paços do Palácio Pallavicini-Rospigliosi, que o imortalizou.

Acontece porém que esta representação do velho mito do “aparentemente fraco contra o aparentemente forte” é, no mínimo, impactante. Para já porque é enorme para além do que pode ser grande uma tela: o gesto do pequeno David é amplo, o corpo prostrado de Golias é titânico, sem que a diferença de escala nos pareça fictícia (o punho da espada de Golias, nas mãos de David, é fundamental para o bem sucedido jogo de escalas).

Além disso, sucede que Guido Reni é uma espécie de antítese de Caravaggio, fugindo muito das cenografias mais densas, trágicas e lúgubres da Bíblia para se focar antes em ambientes metro-sexuais, aéreos, pueris e pacíficos, fazendo recurso a uma abordagem classicista que já na sua época se tornava um pouco estafada, mas que rendia ainda sólidos florins. Ora, nesta magnífica obra, abre-se a exepção: o momento é intenso e terrífico. Está-se mesmo a ver que o grandalhão vai perder o sagrado contacto entre a goela e o esófago. A coisa não vai correr bem. Antecipa-se o sangue e vive-se o horror. Mas, acima de tudo, nota-se a ausência da dicotomia herói e vilão, triunfando a lúcida dialéctica entre o derrotado e o vencedor: Golias, indefeso, não parece assim um tipo tão desprezível que mereça este impiedoso fim e David, na sua arrogante púrpura, vai desfechar o golpe terminal sem aparente problema de consciência: está sereno e algo ruborizado, com o joelho convenientemente assente nos rins do gigante, mas sem vestígios de um ódio de morte. Tem até, na sua pequenez de menino cínico, um certo ar profissional.

E é precisamente aqui, neste momento ausente de valores prosaicos, neste gesto suspenso entre a certeza da decapitação imediata e a inutilidade moral da vingança, que está o apelo da obra e a força cénica que capta e impressiona o olhar.

 

 

3 . JAN VAN GOYEN . Tempestade

 

1637, óleo sobre madeira, 23.5×36.5 cm.

 

Esta pérola assim, em reprodução mínima e digital, não se percebe. Não se percebe o encanto, não se percebe a intensidade cénica e não se percebe sobretudo a solidão quieta do camponês. Observada na parede do M.N.A.A., percebe-se melhor: o personagem está de costas mas quase que é possível adivinhar o fascínio despreocupado que ilumina o seu olhar. A tempestade aproxima-se, ameaçadora sobre os restos de luz solar que obstinadamente o iluminam ainda. As árvores corroboram a ameaça, o horizonte sopra sarilhos e a paisagem toda movimenta-se atormentada. Mas ele não. Está de perna traçada, contemplando a borrasca. Não tem pressa de chegar a lado nenhum e parece encontrar-se num ermo distante, a milhas de um abrigo que o redima. E é o mistério dessa permanência, como uma espécie de atitude zen sobre o abismo; é esse despreocupado olhar sobre a tempestade que excita a imaginação do observador.

Jan van Goyen (1596 – 1656) pintou mais de mil e duzentas coisas destas nos sessenta anos que passeou pelo planeta: paisagens urbanas e paisagens fluviais e paisagens bucólicas e paisagens rurais, sempre dentro do espírito naturalista de que foi um seguidor inveterado e ensaiando frequentemente a mesma perspectiva e os mesmos cenários, numa busca incessante pelo aperfeiçoamento de um tema singular.

Mestre na criação de atmosferas poderosas e monocromáticas, que na verdade dominam e animam todo o conteúdo imagético, van Goyen não é propriamente um génio do seu tempo e, apesar de ter deixado algumas marcas na escola holandesa do século XVII, nunca alcançou grande reputação em vida (muito porque somava à ocupação de artista a de homem de negócios, para a qual, segundo parece, não tinha talento nem carácter).

Seja como for, este boneco é magnífico, e a humanidade fica-lhe muito grata por ele, Sr. Jan van Goyen.

 

 

4 . CANALETTO . Praça de S. Marcos

 

1740-1750, óleo sobre tela, 58.5×103 cm.

 

Giovanni Antonio Canale (1697 – 1768), conhecido para a posteridade por Canaletto, ganhou fama pelas suas magistrais representações dos canais da Veneza e é um personagem de conteúdo biográfico algo desinteressante, não fosse o seu descarado talento. Enquanto os paisagistas da sua época desenhavam esboços dos cenários para depois se fecharem no estúdio e desenvolverem a obra, Canaletto iniciava e concluía todo o trabalho no mesmo sítio, o que lhe trazia vantagens competitivas, principalmente no que respeita ao detalhe, à minúcia e ao preciosismo: as suas imagens são intensas de vida humana e quase de valor antropológico. Este amor picuinhas por Veneza, este rigoroso compromisso para com a realidade etnográfica da sua cidade natal rendeu-lhe um endinheirado clube de fãs em Inglaterra mas, em ultima análise, acabou por lhe amputar a criatividade.

Por causa da Guerra da Sucessão Austríaca, os patronos ingleses deixaram de poder visitar Veneza e, quando Canalleto se vê obrigado a ir acampar para Londres (a velha história da montanha e do profeta), não se dá nada bem com a mudança de cenário. Há diferenças grandes entre o palácio dos Doges e a mansão Isabelina. Há diferenças enormes entre a cidade mediterrânica, luminosa e festiva, e a metrópole bretã, invernosa e protestante. Há diferenças de cores e de cheiros, de sons e de costumes e o mestre não consegue adaptar nem a sua vida nem a sua pintura a essa soturna realidade. Para Canaletto, imigrar foi como que um caminhar para a cova da história da arte e, nesse sentido, este é um senhor que morreu duas vezes.

Funerais à parte, permanecem dois factos importantes. O primeiro: nesta pobre reprodução da magnífica Praça de S. Marcos segundo Canalleto, não nos é permitida a resolução suficiente para se perceber que o homem é um verdadeiro e peregrino precursor do impressionismo. Apesar da incrível pormenorização cenográfica, a composição é de ponto em ponto, pincelada aqui, pincelada ali. A aparente contradição entre impressionismo e preciosismo cai ao zero absoluto.

O segundo: por aparente paradoxo, as mais notáveis representações paisagísticas de Veneza chegam-nos dois e três séculos depois da sua proverbial grandiosidade. Esta Veneza que vemos aqui, não é já a cidade capital comercial do mundo ocidental, a delicada e educada e burguesa Babilónia dos séculos XIV e XV. Mas, ainda assim, surge-nos pungente de vida e riquezas, de tradições e exibicionismos. Parece uma cidade cosmopolita, opulenta, colonialista, dir-se-ia imperial.

A verdade é que as representações de Canalleto muito contribuíram para consubstanciar as teses de monstros sagrados como Braudel, que tentaram, com algum sucesso, demonstrar que a consolidação das rotas atlânticas registada no século XVI não faliu a vocação comercial do Mediterrâneo nos séculos posteriores. A ideia da decadência de cidades como Génova e Veneza nos séculos XVI e XVII está a perder fôlego académico, porque se encontraram entretanto registos de actividade comercial, financeira, portuária e naval muito contraditórios à tese universalmente aceite até ao segundo terço do século XX.

No canto inferior direito da tela encontramos dois símios. E se Canaletto os representou, é porque estavam mesmo lá, na Praça de S. Marcos. E se estavam lá naquele dia, a lógica probabilística recomenda ao senso comum que outros símios por ali deveriam passear, com naturalidade, pelo correr dos dias. E se outros símios passeavam com regularidade na Praça de S. Marcos é porque este ainda era o centro de um negócio tentacular sobre o Mediterrâneo e não de uma cidade falida pela aventura portuguesa ou pela cobiça castelhana.

Canalleto estava carregado de razão: é sempre importante prestarmos atenção ao detalhe. Até porque é a única maneira de entendermos a história.

 

 

5 . JEAN-HONORÉ FRAGONARD . Retrato do Duque de Harcourt.

 

1769, Óleo sobre tela, 81.5 cmx65 cm.

 

Último campeão Rococó do Antigo Regime, Jean-Honoré Fragonard (1732 – 1806) é um belo personagem da história trivial da arte. Os seus cenários configuram-se entre o bucólico e o frívolo, os temas são ou galantes ou enjoativos, impera a vida profana da clientela – aristocratas de segunda ordem e burgueses de primeira – e a escola do alto barroco já estava esgotada quando o homem começou a pintar. Também há quem goste de pensar que o mestre francês, em vez de velho-do-restelo-do-barroco é um pioneiríssimo percursor do romantismo. Tese fraquinha: Fragonard pintava os mesmos bucólicos ambientes que Goya, antes de enlouquecer, porque a escolástica da sua época assim o exigia e não por visões vanguardistas da filosofia liberal do futuro.

Dito isto, há que virar a face à moeda e perceber que a técnica de Fragonard é prodigiosa (só mesmo com muito talento é que se consegue tornar razoavelmente interessante o aborrecido assunto da menina no baloiço) e que o mestre nos deixou generosamente para cima de meio milhar de obras (sem contar com esboços, desenhos e gravuras), cálculo que, convenhamos, não deixa de ser impressionante.

Neste magnífico retrato do Duque de Harcourt – uma das suas 15 Fantasias – o génio de Fragonard revela-se completamente: as dimensões da tela não são de todo monumentais, mas o mestre francês consegue criar uma impressão de grandeza que muito se deve ao enorme poder visual da obra. Ao seu imediatismo agitado e grandiloquente. Tudo vibra de movimento na posição estática do Senhor Duque. Dir-se-ia que corre uma ventania danada, mas trata-se nitidamente de um plano interior, de estúdio. O aristocrata é retratado como um super-herói do século XVIII embora as primeiras 4 páginas de resultados do Google não consigam justificar a glória imortal do retratado. Há um excesso, um exagero, uma falsidade neste boneco que são verdadeiramente arrebatadoras. Fica a ideia que, para Fragonard, a pintura é a arte da falácia.

Mas pelo menos neste caso, o espectador gosta de ser enganado.

 

 

6 . AUGUSTE RENOIR . Cabeça de Mulher ou Mulher com uma rosa

 

Sem data, óleo sobre tela, 35cmx27 cm

 

De um homem que nos deixou quantidade espantosa de obras primas, olímpica luminária do Impressionismo, tudo o que possa ser escrito já o foi ou será, por críticos qualificados e académicos peritos. Pierre-Auguste Renoir (1841-1919) merece o respeito que um ou dois parágrafos a propósito da colecção do Dr. Rau não podem garantir.

Ainda assim, este retrato deixa qualquer amador num êxtase onírico, do qual é difícil acordar. Nos olhos-lagos da rapariga, cabem odisseias. O meio sorriso, sereno e confiante, compete com o de Mona Lisa. O rosto salta para fora da tela a cada segundo de observação, como se a seguir fossemos obrigados à cortesia do beija-mão, subjugados pelo encanto, meio maturo, meio juvenil de uma personagem que, pela sua delicada mas intensa presença, implica uma viagem no tempo, um regresso à belle epoque.

Renoir gostava de pintar retratos, que também contribuíam significativamente para a sua subsistência material, geralmente utilizando cores saturadas, explorando ambientes intimistas e representando cândidos figurinos. Esta obra de puro magnetismo, não foge à regra. É uma verdadeira pérola, cristalizada num momento da história em que a arte europeia encontrou, talvez, o seu apogeu.

 

 

7 . MAX LIEBERMANN . Recreio no Orfanato de Amsterdão

 

1876, óleo sobre tela, 45cmx72 cm

 

Max Liebermann (1847-1935) foi, com Lovis Corinth e Max Slevogt, uma das primeiras figuras do impressionismo alemão, o que, convenhamos, nem é dizer grande coisa. Mas independentemente do clube epistemológico, não deixou de ser um prodigioso mestre e um ser humano como deve ser: ao contrário do estereotipo popular na Europa latina, em que o artista tem que ser um excêntrico ou um bêbado ou um doido ou as três coisas ao mesmo tempo, Liebermann era um homem sério, sóbrio e elegante, um berlinense virtuoso com estudos de filosofia e de direito e espírito vanguardista.

E é precisamente essa predisposição pioneira, esse domínio do desenho avant garde, que aqui se ilustra na perfeição.

Este orfanato de Amsterdão é, antes de outra maravilha qualquer, um verdadeiro tratado de design gráfico. A coisa está tão equilibrada que até enerva. A utilização do vermelho e do branco reforça a perspectiva e o traço estiliza as formas. Depois, quase que se ouve perfeitamente a conversa das raparigas, por entre o tricotar dos minutos.

Este boneco é maravilhoso por causa da sua simplicidade e da sua sensibilidade. Porque o homem consegue fazer de um canto de um orfanato uma obra prima. É preciso um génio enorme para fechar este ângulo assim. É preciso fazer-se muita luz no espírito, para arrancar a arte dos braços do tédio.