A trégua de Natal de 1914 é uma história que muitos de nós já ouvimos, mas que vale bem a pena revisitar. É quase boa demais para ser verdade.
Quando os anjos apareceram aos pastores nos arredores de Belém, nessa noite eterna há mais de 2.000 anos atrás, falaram das grandes notícias da encarnação e cantaram o que se tornou a oração universal de Natal pelos séculos dentro:
“Paz na Terra e boa vontade para com os homens”.
Talvez esses mesmos anjos cantassem sobre a Frente Ocidental em 1914, quando as armas se calaram.
A trégua de 1914 é uma história tão inacreditável como bela: uma série de cessar-fogos generalizados, espontâneos, voluntários e não oficiais entre os alemães e os ingleses ocorreram nos dias em torno do Natal desse ano.

A Primeira Guerra Mundial tinha apenas cinco meses, e tinha sido prometido aos soldados de ambos os lados que a guerra seria tão curta que eles estariam “em casa no Natal”.
Mas em Dezembro, tornou-se claro que a guerra seria muito mais longa e sangrenta. Tinha evoluído para uma situação estacionária, em que os exércitos entrincheirados disparavam uns contra os outros incessantemente – e a visão de um inimigo a meros 30 metros de distância era suficiente para abrir fogo – ou entravam em bárbaras batalhas ou escaramuças de corpo a corpo.
Em Inglaterra, cartazes de guerra retratavam o inimigo alemão como um macaco furioso decidido a destruir ingleses inocentes, enquanto a propaganda alemã advertia que a vitória britânica significaria o empobrecimento e a ruína da pátria. Era a linguagem da guerra total; o tudo ou nada: vencer a guerra ou perecer.
Quando chegou o Natal, parecia que milhões de homens passariam o seu dia ajoelhados na lama, disparando contra os seus semelhantes, e alimentando sentimentos de ódio contra o seu inimigo sem rosto e sem nome.
Britânicos e Alemães juntam-se para entoar cânticos de Natal.
Numa carta publicada no The Bedfordshire Times e no The Independent a 1 de Janeiro de 1915, um cabo escreveu sobre a sua experiência na madrugada do dia de Natal:
“Eu estava de vigia e um dos alemães desejou-me um bom dia e um Feliz Natal. Nunca fiquei tão surpreendido na minha vida quando a luz do dia os revelou, todos sentados em cima das trincheiras a acenar com as mãos e a cantar para nós.”
Outra carta de um soldado, publicada no The Carlisle Journal a 8 de Janeiro de 1915, regista a celebração britânica e alemã do Natal. Os soldados entoaram canções de Natal juntos, trocaram cigarros e lembranças, e beberam à saúde do rei. Ele escreveu que:
“O regimento travou de facto um jogo de futebol com os alemães, que nos venceram por 3-2. Depois disto, foi quase um Natal feliz, embora estranho”.

Em muitas secções da frente, os soldados alemães montaram velas e árvores de Natal periclitantes nos parapeitos das trincheiras. Podiam estar cercados por lama gelada, mas celebrariam o nascimento de Cristo.
Um soldado belga escreveu que não se arrependia de ter passado esse Natal nas trincheiras. A experiência daquelas tréguas tinha valido a pena:
“A minha recordação será sempre de uma beleza imperecível. À meia-noite um barítono levantou-se e com uma rica voz ressonante cantou Minuit Chretiens [‘Holly Night’ / ‘Ó Noite Santa’]. A artilharia cessou imediatamente quando o cântico terminou e os aplausos irromperam de ambos os lados das trincheiras.”
O breve cessar fogo foi também aproveitado pelos soldados para enterrar os cadáveres que jaziam na terra de ninguém, depois de uma ofensiva a 18 de Dezembro. Também aqui, alemães e ingleses colaboraram pacificamente durante todo o processo.

Ver a humanidade no inimigo.
Era a última vez que uma trégua generalizada desta magnitude aconteceria em toda a frente. Mais um ano de luta intensa e de pesadas baixas amargurou as facções entrincheiradas, e à medida que a guerra continuava, eles tornaram-se incapazes de ver a humanidade dos seus inimigos.
Ninguém teria culpado o soldado inglês que estava de vigia naquela madrugada do dia de Natal se ele tivesse disparado sobre os alemães que se aproximaram da sua trincheira. Mas ele não o fez. Ele um cristão suficientemente lúcido para saber celebrar o nascimento de Cristo com o seu inimigo – mesmo continuando a acreditar na justiça da sua própria causa.
Quando rezamos para que cessem as divisões, e para que a paz reine na Terra neste Natal, evocamos algo tão radicalmente belo como a trégua natalícia de 1914. É um milagre que começa quando baixamos as nossas defesas o tempo suficiente para vermos a humanidade do outro lado.
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