Não estás num dia bom e tens um gládio a abrir-te caminhos tortuosos no cérebro. Amaldiçoas o momento em que decidiste alistar-te naquele brutal exército de Tibério, arregimentado para calar a ira dos transalpinos. Tibério: o general intratável. Diziam os soldados sob o seu comando: os exercícios são batalhas sem sangue, as batalhas são exercícios sangrentos. Tibério: o imperador que não devia ter sido. O imperador que Lívia fez, com a paciência da aranha e o cálculo de Arquimedes. Perdeste a rija saúde nos Alpes, quando um bárbaro te enfiou a frâmea na nuca. Nem sabes como é que sobreviveste, mas sabes de onde vem essa cefaleia que te ensandece. E o que ganhaste com isso, imbecil? A governação da província mais infecta do império. Ora merda.
Não estás num dia bom. O teu filho jaz, febril, na catre do teu medo. A tua mulher chora em silêncio. O silêncio dela é um grito prolongado, que ecoa pelas salas do pretório com eloquente permanência. O escravo grego já não sabe o que fazer à criança. O escravo grego sabe tanto de medicina como o bárbaro que te enfiou a lança no coro cabeludo. Só tens este descendente, que já nasceu tarde. Que foi sempre tolhido e frágil e digno das anedotas da guarda. Menino de palha que não é o varão que rogaste aos deuses. Que te envergonha de cada vez que abre a boca. Que te humilha de cada vez que a pretexta lhe cai dos ombros esguios. Estás preparado para perdê-lo. Mas não para a dor da tua mulher.
Não estás num dia bom. Licínio acorda-te do teu torpor:
– Senhor.
– Fala.
– Os sacerdotes estão no átrio. Numa agitação. Requerem a tua presença.
– Que venham noutro dia.
– Senhor…
– Que venham noutro dia!
O calor de Jerusalém não é como o calor no resto do mundo. Aqui o corpo nem ousa suar. E o vento vem do deserto. Traz areia e maldições e escalda os sentidos e irrita a epiderme. Mudas de túnica três vezes ao dia e esfregas-te com óleos como um pederasta só para te coçares até à ferida. Isto não é uma província. Isto é um castigo, mas, de entre os teus erros, não consegues perceber o que fizeste para merecer a pena. Houve aquela criada que mataste, durante o coito, por nenhum motivo em especial, só para experimentares o doce fel desse poder. Mas será Juno assim mesquinha para te castigar pela morte de uma escrava? É verdade que ficaram em Roma dívidas por pagar. É verdade que traíste os teus soldados, quando os deixaste a gelar no Inverno da Panónia. Mas pior fizeram outros, de melhor sangue. Fizeste o que fizeste para vingar. Não é fácil chegar a governador, mesmo a governador do cú do mundo, quando nasces plebeu. Vais cometer vilanias. Nem maiores nem menores que as vilanias de toda a gente. Modestas até, considerando a crueldade e a corrupção daqueles que nasceram para senadores e cônsules e césares.
– Senhor.
– Por todas as raivas de Saturno, deixa-me na paz da minha tortura!
– Perdoai, mas não ouvis o clamor dos sacerdotes? Exigem uma audiência.
De facto, ouves os bárbaros. Como é que um povo de tal forma tolhido de imaginação que só reza a um deus pode ser assim impossível de governar? Como é que um povo que se diz eleito, produz semelhante raça de sacerdotes? Corja indigna de sicofantas. Infames remendos da impostura humana.
– Licínio.
– Senhor.
– Chama a guarda e corre com eles.
– Senhor.
– Obedece!
– Mas…
– Ouve-me cão, se dás valor aos teus testículos, faz o que te digo.
A enxaqueca desce da cabeça às vísceras. Queres-te levantar do lectus e desaparecer dali, mas a dor imobiliza-te e o estupor do secretário mantém-se quedo, à tua frente.
– Licínio.
– Senhor.
– Porque desafias a minha cólera?
– Senhor, é Páscoa.
– E eu com isso?
– Seria insensato convocar a violência sobre os sacerdotes nesta altura, senhor. Tanto mais que, como bem sabeis, os judeus andam agitados desde que cunhastes na moeda a imagem de Apolo. E em Roma fala-se que à próxima revolta serás chamado pelo imperador.
– Licínio.
– Senhor.
– Manda-os entrar.
– Senhor, é Páscoa.
– E por ser Páscoa, insolente, ignoras o que te digo?
– Os sacerdotes não vão entrar no pretório, que consideram impuro. Tendes que ir ao seu encontro, lá fora.
– Licínio.
– Senhor.
– Sabes que já mandei supliciar servos por menos.
– A minha vida nada vale e o meu corpo pertence-vos para que façais com ele o que vos aprouver.
Reúnes todas as forças que não tens para te equilibrares nas duas patas. Desces ao átrio. Dir-se-ia que todo o clero da Judeia se reuniu ali, para te ofender a sensibilidade. A turba exala um hálito de cadáveres. Diriges-te ao sumo patriarca, figura repelente, que te enoja como uma ratazana grávida.
– A que se deve a vossa ousadia, Cáifas? Sabes que este não é dia de audiências.
– Trazemos-te um traidor. Para que o condenes.
A turba abre-se como uma vulva negra, para revelar um homem esquálido, sujo, olhos pisados, dobrado sobre correntes.
– Que fez este infeliz para que Roma o condene?
– Diz de si próprio que é o Rei dos Judeus. Que é filho de Deus. O messias de Ezequiel. Criou o caos no Templo, flagelando com azorrague os vendilhões e impedindo o justo comércio e assim, dificultando a cobrança do tributo a que nos obrigas.
– E de onde é natural este impenitente?
– Da Galileia.
– Diz-me desgraçado, achas que és rei?
O homem levanta a cabeça. Olhos nos olhos e a tua cefaleia dissipa-se. Por um momento, ou por toda a eternidade, sentes consolação. Como um escravo das galés que foi transportado ao Olimpo. És livre. Conheces a paz. Sabes a verdade.
– Não sou rei daqui. O meu reino está onde não chega o teu império.
És devolvido à política do inferno. Tens uma súbita vontade de estar com o teu filho. De consolar a tua mulher. Queres fugir.
– Não encontro razões para cumprir a vossa vontade, sacerdotes. E este homem é galileu. Levem-no a Herodes, onde reside a jurisdição.
Viras as costas e ignoras os protestos. Aceleras o passo. Encontras a tua mulher curvada na sua dor, sobre a criança que delira. O teu corpo de soldado velho abre-se num amplexo novo. É aqui que resides. Nesse abraço sobre o sangue do teu sangue e o amor da tua vida.
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