Uma ilha é uma porção de terra rodeada de histórias por todos os lados. A história do bancário que queria fazer da filha uma estrela do golfe, mesmo que para isso fosse preciso enganar a família, perder os amigos, cair em desgraça. A história do vendedor ambulante que é orfão da mãe viva e a história da mulher pela qual se apaixona, que é viúva da vida. A história da peixeira rica e modesta, com um coração do tamanho do maior lírio que alguma vez foi pescado nas águas do Mar Amarelo. A história da rapariga que vive com o fardo da sua irmã gémea ser muito diferente dela, e muito diferente de toda a gente, e a história do capitão que a ama incondicionalmente, príncipe perfeito da apanha do marisco. A história de dois amigos que se odeiam só para serem vencidos pelo amor dos filhos. A história das velhas que sustêm a respiração para lá dos limites olímpicos, disciplinadas atletas da apneia e da tradição. A história da criança que concretizou um desejo na noite das cem luas. A história da mulher que casou três vezes com o mesmo equívoco. A história de um emaranhado de seres humanos que lutam contra as contrariedades e os dramas e as tragédias da existência, na ilha vulcânica de Jeju.

Em boa hora criada e prodigiosamente escrita por Hee-Kyung No, “Amor e outros dramas” (“Our Blues”) é uma daquelas séries coreanas que têm o condão de nos reconciliar com a vida e com a humanidade. Ao longo dos seus deliciosos 20 episódios, testemunhamos o trajecto sofrido, mas nobre, o percurso doloroso, mas redentor, de personagens que são construídos com carinho e veracidade, bonecos televisivos que passam a seres humanos concretos logo da primeira vez que abrem a boca para se lamentarem do destino ou para se gabarem de vãs glórias ou para, de repente, calarem as nossas defesas sobre a ficção com remates de profundidade contundente, gestos de sensibilidade enternecedora, disparates mundanos, acções virtuosas.

 

 

No cruzamento de infelicidades e alegrias, a ilha é mais uma criatura entre as muitas dezenas de personagens. Nem fria nem quente, nem bonita nem feia, está ali para ser um palco vivo, cercada pelas ameaças do mar, isolada do continente como um perímetro de exílio que se fecha sobre os destinos destas mulheres e destes homens como nós, desastrados e ridículos como nós, titubeantes e erráticos como nós, gloriosos bocadinhos da grande criação de Deus, como nós.

O sumptuoso enredo é suportado por um irrepreensível exército de actores, entre crianças e gerontes, característica algo paranormal da indústria de produção audio-visual sul coreana: como é que é possível encontrar tantos actores de talento num país com 50 milhões de almas? E esta série, se fosse habitada por actores medianos, seria um desastre, porque o guião está para lá de ser exigente com a arte do fingimento.

Despido das politiquices enfadonhas e das afirmações de género e das vontades distópicas e das alucinações woke e das pós-modernices todas que a Netflix tanto gosta de financiar, esta série consagra valores morais sólidos, dir-se-ia, clássicos: a amizade, a solidariedade, a lealdade, o respeito pela vida e pelos seus milagres, a resiliência em desfavor da vitimização, a consideração que devemos aos mais velhos, a importância da família e as marcas dolorosas que a disfunção familiar deixa nos seres humanos que experimentam esse vazio de afectos primordiais. A importância de saber que pertencemos. Que pertencemos a uma sociedade, a uma etnia, a uma família, a uma cidade, a um bairro, a um grupo de amigos. O elogio do trabalho como motor da independência e da dignidade humanas. O irresistível apelo ao estabelecimento de uma relação matrimonial frutífera e duradoura, que dê sentido à vida e que dê luta às suas vicissitudes.

 

 

“Amor e outros dramas” não podia ser apenas um romance, não podia ser só um filme, não podia ser uma peça de teatro, uma ópera, um poema. Só podia ser um projecto televisivo, um produto de fascículos sobre fascículos, servido em doses intensas de humanidade extrema e pungente, como uma grande aguarela que tem necessariamente de ser pintada aos bocadinhos. Só a televisão suporta a sua grandiosidade dramática e novelesca. Só a televisão consegue convencer o espectador que a modéstia cenográfica e a humildade cinemática servem propósitos artísticos muito superiores à cosmética. Porque ao contrário do que nos tentam vender no Século XXI, o derradeiro deslumbramento não é o que decorre de desalmados aparatos tecnológicos, que oferecem impermanentes êxtases sensoriais até ao cansaço da retina. Não. A consolação última do espectador acontece quando é confrontado com a verdade intrínseca a todo o ser humano: a de querer viver bem com o seu mundo.