Talvez a frase mais lida, mais memorizada, mais referenciada e mais enigmática alguma vez escrita na história da literatura ocidental é a do versículo que inicia o Evangelho de João:
No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e Deus era o verbo.
João 1:1
Estas breves palavras de carácter iniciático libertam complexidades e subtilezas sem fim, encerram substância para doutoramentos incontáveis, intermináveis conversas de café, ensaios que vão ser publicados pela eternidade a dentro, doutrinas teológicas que disparam em todos os sentidos da fé e da razão, múltiplas questões profundas sobre a condição humana e a natureza divina, enfim, há todo um labirinto de possibilidades e interpretações e especulações na abertura daquele que é o último evangelho do cânone cristão e também o mais denso em termos teológicos e o mais dissidente no que respeita à narrativa, dos quatro que constituem o Novo Testamento (é por isso que os outros três foram aglutinados como “evangelhos sinópticos” e este ficou de fora).
Para perceber a complexidade e a profundidade destas palavras, há que primeiro voltar ao texto inicial, escrito, como todo o Novo Testamento, em grego helenístico, ou koiné, a forma popular do grego que emergiu na pós-Antiguidade clássica.
Eis a frase em grego koiné:
Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγος, καὶ ὁ Λόγος ἦν πρὸς τὸν Θεόν, καὶ Θεός ἦν ὁ Λόγος.
Aqui, em grego contemporâneo:
En archē ēn ho Lógos, kai ho Lógos ēn pros ton Theón, kai Theós ēn ho Lógos.
A palavra chave do versículo é Λόγος / Logos, que não tem na verdade tradução nem para português nem para as línguas ocidentais. Logos pode significar:
a) Aquilo que leva à formulação da razão; o processo racional em si mesmo, ou
b) Aquilo por meio do qual se exprime a razão; que será a palavra, o verbo ou o discurso.
O termo foi inicialmente traduzido na Vulgata de São Jerónimo por verbum que foi vertido para as línguas neo-latinas em “verbo”, embora na tradição anglo-saxónica da bíblia de St. James, e na germânica tradução de Lutero, a opção tenha recaído no vocábulo “palavra” (Word e Wort). Escusado será dizer que estas opções não perfazem uma tradução satisfatória.
Além disso, há milhões de páginas escritas sobre a natureza sintática e consequentes problemas de tradução e entendimento deste versículo dos versículos. A essas discussões, somam-se muitas outras que o Evangelho joanino liberta (identidade do evangelista, fidedignidade do seu relato, consequências teológicas das afirmações que coloca na boca de Cristo, etc.) e a que o ContraCultura voltará, porque não são de todo irrelevantes. Mas não servem porém os objectivos do presente texto.
Seja como for e a partir daqui, apela-se ao leitor que entenda o primeiro versículo do Evangelho de João no seu integro e literal sentido, pese embora a deselegante formulação:
No princípio era a razão e o seu discurso, e a razão e o seu discurso estavam com Deus, e Deus era a razão e o seu discurso.
Estas palavras dão que pensar: João está a fazer uma afirmação que é de um arrojo teológico, filológico e filosófico absolutamente incrível. Antes de tudo, antes da criação material, antes do cosmos, das estrelas, dos planetas, dos céus e dos mares e dos seres, existia a razão e a palavra que a exprime e uma coisa como outra definem e misturam-se com o criador divino. Para todos os efeitos, João determina que a razão é Deus e que Deus é a razão. Convenhamos, isto é tudo menos dizer pouco.
Ainda por cima, o peso iniciático do versículo, e o papel criador do logos é intensificado com as palavras “No princípio” (En archē) que são exactamente as mesmas com que a primeira versão em grego do Antigo Testamento, a Bíblia dos Setenta, inicia a narração do Genesis:
No princípio Deus criou os céus e a terra.
Genesis 1:1
E tanto mais não é acidental ou ligeira esta poderosa afirmação que o termo logos já tinha sido utilizado, séculos antes, pelos primeiros filósofos helénicos – e depois pelos estoicos – para designar a inteligência que preside ao universo. Heraclito dava ao logos a condição de imanência eterna. Mas o evangelista vai mais longe ainda, no potencial transcendente do termo:
E o verbo fez-se carne e habitou entre nós; e contemplámos a sua glória – glória enquanto filho unigénito do Pai, pleno de graça e de verdade.
João 1:14
Portanto, a razão e o seu discurso sofrem uma metamorfose para se materializarem na carne de Cristo, porque Cristo e o seu pai são um só, como no decorrer do evangelho de João o messias não se cansa de afirmar, de forma escandalosa para os rabis da época e polémica para os exegetas dos textos bíblicos de todos os tempos.
Como escreve Frederico Lourenço numa das suas extensas notas à sua própria tradução do Novo Testamento:
É da Razão divina encarnada em forma de homem – Jesus – e da sua passagem por este mundo que trata, pois, este Evangelho.
No século XXI, a cultura dominante dissociou o cristianismo da razão. As pessoas relacionam a racionalidade com a ciência ou com a filosofia secular e, confundindo teologia com fé, fé com mito, mito com história e a história com ficções hollywoodescas, empurraram a religião para o campo oposto: o da irracionalidade. Ora, acontece que o evangelho de João é o mais importante dos evangelhos no que diz respeito à teologia cristã. E, como é fácil de ver, privilegia precisamente a razão, centralizando-a como parte do ser divino e do acto criador. O cristianismo é, em João, a afirmação do poder transcendente da razão.
E se o valor primeiro e fundamental atribuído à racionalidade, mesmo que num contexto criacionista e transcendental, possa ser entendido, em parte, à luz da tradição helénica de que os evangelhos são produto óbvio, já a ideia de que a palavra é motor fundacional do cosmos rebenta com os neurónios de qualquer um. Então não é a linguagem um produto da função biológica e, depois, cultural, resultado da evolução do Sapiens e dos processos fisiológicos, históricos e civilizacionais que daí decorreram? Não é o discurso uma realidade de âmbito, digamos, antropológico? Como é que a palavra pode presidir ao início de todas as coisas?
Aqui será talvez pertinente lançar um novo desafio ao paciente leitor: que tente pensar sem palavras. Tudo o que vai conseguir, provavelmente, é experimentar sensações (e se calhar, a sensação de frustração por não conseguir pensar em nada se não tiver vocábulos que lhe construam o raciocínio). A palavra é um instrumento de ordenação e diferenciação da realidade. Sem ela navegamos num mundo caótico, sem coordenadas, taxonomia ou referências funcionais. Sem linguagem não há civilização, nem religião, nem filosofia nem maneira de expressarmos inteligência, cultura, sabedoria, sensibilidade ou até afeição. É com os vocábulos que construímos o nosso mundo, que damos forma à realidade.
É por isso que a utilização correcta da palavra é tão importante. Quando entramos numa farmácia não o fazemos com a intenção de comprar pastéis de nata. Quando ouvimos palavras gentis de alguém que amamos queremos acreditar que são verdadeiras. Quando lemos uma notícia no jornal, esperamos que quem a escreveu seja fiel aos factos que reporta. Porque as palavras estabelecem essa determinante relação com a realidade, precisamos que elas nos sejam fiéis. Precisamos de confiar nelas para sobreviver aos difíceis e constantes desafios da existência.
Não admira assim que por tantas vezes, nos 4 evangelhos, Cristo aconselhe os seus seguidores a falarem verdade e a condená-los a um dramático juízo final quando se recusam a usar a palavra com a devida precisão, como, por exemplo, no evangelho de Mateus
Pelas tuas palavras serás justificado e pelas tuas palavras serás condenado.
Mateu 21:37
O uso da razão e a sua expressão pela palavra estão, factualmente, na base das nossas vidas. Estão, factualmente, no princípio de tudo, porque tudo o que existe no cosmos tem uma nomenclatura específica que usamos para diferenciar, catalogar e qualificar as coisas.
Tanto mais que, e é aqui que se plasma completamente a assertividade das palavras de João, as palavras têm um imenso poder criador. É através da sua utilização oral que Deus faz o cosmos acontecer:
Disse Deus: “Haja luz”, e houve luz.
Genesis 1:3Depois disse Deus: “Haja entre as águas um firmamento que separe águas de águas”.
Genesis 1:6
Dentro do universo vocabular, os nomes próprios têm especial importância. Enquanto o verbo indexa à acção (e esse será talvez o motivo por trás da tradução de S. Jerónimo) e o adjectivo permite a definição da qualidade, os substantivos funcionam como âncoras que usamos para imobilizar a assustadora dinâmica das coisas. Para cristalizar os segmentos fundamentais do meio em que vivemos. O mar é fixado, independentemente das marés ou das tempestades. A terra imobiliza-se sob os nossos pés e até o vento é inescapável, quando os nomeamos.
E de novo voltando aos primeiros versículos do Genesis, verificamos que a atribuição de nomes às coisas criadas é essencial no processo criativo:
Deus chamou à luz dia, e às trevas chamou noite. Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o primeiro dia.
Genesis 1:5
Ao firmamento, Deus chamou céu. Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o segundo dia.
Genesis 1:8
À parte seca Deus chamou terra, e chamou mares ao conjunto das águas. E Deus viu que ficou bem.
Genesis 1:10
Acima dos substantivos comuns, estão os nomes próprios, que penetram ainda com maior profundidade sobre o tecido da realidade. Os substantivos próprios são graníticos e eloquentes. Dizem-nos muito sobre as coisas e as pessoas nomeadas (sobre um qualquer e hipotético José Bacelar ficamos instantaneamente a saber que é um ser humano do género masculino, que nasceu num país cristão de língua portuguesa, que teve provavelmente na família uma história de conversão judaica ao catolicismo, etc.). Hierarquizam a miríade material e imaterial de objectos e conceitos com que somos bombardeados ininterruptamente, e personalizam a experiência que temos deles. Fazem do plurar o singular, do geral o específico, do colectivo o individual e trazem consigo algo de basilar para a vida humana: a identidade.
Nas primeiras linhas de um outro mito cosmogónico, o babilónico, há um tempo antes dos deuses, ou melhor: há um tempo em que os deuses ainda não tinham sido nomeados.
Quando do alto do céu ainda nada havia sido chamado pelo seu nome,
e aqui em baixo na terra nada havia sido nomeado
Apsu, o primeiro, o progenitor de tudo o que existe, e mummu T’iamat misturaram as suas águas.
Canto da Criação
Também aqui, a palavra – e no caso – o substantivo próprio, precede até a existência divina. “Também” porque, por muito que isto incomode a ortodoxia cristã, e sendo verdade que João esclarece que a razão e o seu discurso são o mesmo que Deus porque fazem parte de Deus, a verdade é que a frase não foi construída, como seria natural e expectável, dando prioridade cronológica à entidade divina. João não escreve “No princípio era Deus, e Deus estava com o verbo, e o verbo era Deus”. Não. Primeiro vem a razão e a palavra. Como se, sem a razão e a palavra que a articula, fosse remota a possibilidade de Deus existir e criar.
Portanto: a razão existe, imanente e axiomática, num momento zero da História, acompanhada da possibilidade da palavra que a articula e que dará a Deus existência e a capacidade de criar o cosmos. E assim concluindo, considerando o que aqui foi escrito sobre a hierarquia das palavras e tentando perscrutar a intenção do evangelista quando redigiu o famoso versículo, o Contracultura propõe não uma tradução, porque não se atreve, mas um versão do primeiro versículo do Evangelho de João que, sendo especulativa, não deixa de ter alguns argumentos a seu favor:
No princípio era a possibilidade do Nome. E o Nome estava com Deus, e Deus era o Nome.
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