“Quando Jung Chang fez a sua primeira rusga a uma casa particular como membro da Guarda Vermelha de Mao Zedong, ela não estava preparada para ver uma mulher de meia-idade, despenteada e seminua, ajoelhada numa sala mal iluminada, gritando: Mestre da Guarda Vermelha! Eu não tenho um retrato de Chiang Kai-shek! Juro que não tenho! As costas da vítima estavam cheias de cortes sangrentos devido a espancamentos, e ela bateu com tanta força com a cabeça no chão que o sangue escorreu da sua testa. Quando levantou o rabo para se ajoelhar, manchas de fezes eram visíveis e o cheiro de excrementos enchia o ar. Jung perguntou timidamente ao torturador porque estavam a usar a luta violenta em vez da luta verbal que o Presidente Mao tinha prescrito para esta sessão. Outros na sala concordaram com ela, mas o torturador qualificou-os imediatamente como potenciais inimigos de classe: A misericórdia para com o inimigo é crueldade para com o povo! Se têm medo de sangue, não sejam Guardas Vermelhos!”
Stella Morabito . The Weaponization of Loneliness: How Tyrants Stoke Our Terror of Isolation to Silence, Divide, and Conquer.
Podemos, com toda a razoabilidade, perguntar se as políticas de cancelamento do livre arbítrio vigentes nos nossos dias são assim tão diferentes das “sessões de luta” da Revolução Cultural maoista de há seis década atrás.
A “sessão de luta” foi característica das práticas totalitárias da Revolução Cultural de Mao Zedong na China, entre 1966 e 1976. Era um exercício público de humilhação ritual que servia para quebrar o sentido de auto-estima das pessoas. As sessões de luta destinavam-se a condicionar o pensamento e o discurso daqueles suspeitos de dissidência, sendo portanto uma arma na guerra contra o arbítrio independente. Envolviam confissões forçadas, perseguição pela turba e violência física. Este era o palco de eleição para que os Guardas Vermelhos, as tropas de choque de Mao, impusessem a pureza do pensamento e expurgaseem a sociedade dos “inimigos de classe”.
Mao foi um dos membros fundadores do partido comunista chinês, em 1921. Desde então até à fundação da República Popular da China, em 1949, desempenhou, com astúcia, crueldade e escrúpulo draconiano, vário papéis que o conduziram ao poder máximo: agitador local, líder da insurreição na Revolta das Colheitas do Outono de 1927, membro fundador do Exército Vermelho, guerrilheiro e estratega. Em 1934, durante a guerra civil chinesa, enquanto conduzia a “Longa Marcha” de 9.000 quilómetros para escapar às forças nacionalistas e reagrupar o que restava do seu exército, Mao foi escolhido para liderar tanto o Partido como o Exército Vermelho. A força e determinação que mostrou durante esse êxodo tornou-se lendária.
Como tantos líderes totalitários antes e depois dele, Mao Zedong alimentava diligentemente um culto de personalidade. Durante a década de 1930, o movimento comunista mundial saudou Mao como um “porta-estandarte do movimento”. Retratos dele estavam por toda a parte na China. Quando mobilizou milhões de jovens Guardas Vermelhos em 1966, ele já era um deus na terra.
A visão utópica da revolução comunista chinesa pode ser melhor descrita como a do “puro pensamento maoista”, que culminou nas citações do Pequeno Livro Vermelho de Mao. Os seus ditos proverbiais estavam infiltrados na consciência colectiva da mesma forma que os versículos bíblicos estiveram durante séculos gravados nas mentes dos indivíduos no ocidente judaico-cristão, mas intensificados pelo radicalismo mais destrutivo que se possa imaginar e que relega a Inquisição católica ou o fanatismo protestante para o rodapé dos horrores históricos.
Ainda assim, quando Mao lançou a Grande Revolução Cultural Proletária em 1966, a sua estrela desvanecia-se. Uma luta pelo poder estava a ser travada no seio do Partido Comunista Chinês devido ao fracasso total do impulso de Mao para industrializar a nação e aumentar a produção de cereais. O seu programa “Grande Salto em Frente” (1958-62) era de tal forma alienado de razão e senso que causou a maior fome da história da humanidade. O número de mortes estimado é superior a quarenta milhões. Cerca de metade de todos os óbitos contabilizados na Segunda Guerra Mundial.
De forma a aplacar a insatisfação e a revolta decorrente das suas catastróficas iniciativas, no interior do partido e em todos os sectores da sociedade chinesa, Mao tinha que agir. E como a sua cartilha só debitava soluções dantescas, a Revolução Cultural foi de facto uma descida aos infernos.
Alguns estudiosos acreditam que Mao também lançou a Revolução Cultural porque não estava preparado para o nível de crítica honesta que resultou da sua “Campanha das Cem Flores”, entre 1956 e 57. Nessa altura, tinha convidado os intelectuais a transmitirem livremente quaisquer queixas, anunciando poposamente:
“Deixem florescer uma centena de flores, deixem que uma centena de escolas de pensamento se oponham!”
Muitos ingénuos aceitaram o desafio. Mao reprimiu-os impiedosamente e, fazendo uso da sua proverbial perversidade, disse mais tarde que utilizou intencionalmente o programa para
“atrair as cobras para fora dos seus covis”.
A experiência dessa campanha também ensinou a Mao que a luta mais intensa se travava na frente cultural, e não na económica. Chegando a acreditar que o inimigo da revolução seria encontrado dentro de cada indivíduo, ele considerava o pensamento independente como o inimigo – uma ameaça ao seu poder absoluto. Assim, o objectivo teria que ser o de penetrar dentro de cada pessoa, quebrar as suas defesas e violentar a sua individualidade, a fim de impor a conformidade. As “sessões de luta” eram o instrumento perfeito para cumprir esta superlativa ambição.
Mao deu início à Grande Revolução Cultural em Agosto de 1966, com o primeiro de vários comícios de massas na Praça Tiananmen, em Pequim. Mais de um milhão de fanatizados Guardas Vermelhos estavam prontos a responder ao seu apelo. Estes jovens enérgicos – liderados por estudantes de faculdades de elite – já tinham sido doutrinados e varridos pelo entusiasmo do culto da personalidade de Mao. Estavam ansiosos por provar a sua coragem e ganhar o favor do seu herói.
Mao libertou as suas paixões destrutivas e deu-lhes rédea solta para enfrentarem qualquer individuo que considerassem ser um contra-revolucionário ou que muito simplesmente tivesse nascido na classe errada. A sua missão era:
“Destruir os quatro velhos: velhos hábitos, velhos costumes, velhas ideias e velha cultura.”
Todos os sinais desses “quatro velhos” que pudessem ser detectados entre vizinhos, associados, familiares ou transeuntes deviam ser rapidamente obliterados. Guardas vermelhos saquearam casas, queimaram livros, derrubaram monumentos da velha ordem e profanaram sepulturas, incluindo o túmulo do imperador Ming do século XVI. Utilizaram dinamite para explodir a sepultura do filósofo chinês Confúcio, um dos mais importantes e influentes pensadores da história da humanidade.
A ideia era limpar a ardósia para a nova ordem utópica. O seu grito de batalha, “a rebelião é justificada!”, desautorizou a polícia e legitimou os Guardas Vermelhos, fossem quais fossem as suas actividades. Assim, por toda a China, a selvática milícia de Mao espalhou um reinado de terror, destinado a suprimir qualquer deslealdade, não só na população em geral, mas também no seio das fileiras mais qualificadas do Partido Comunista, onde as dúvidas sobre as políticas do supremo líder se tinham instalado.
A arma central foram as “Sessões de Luta”. A sessão começava depois das turbas caçarem um suspeito, gritando-lhe slogans por ser “burguês”, “direitista”, “cão de corrida do capitalismo”, contra-revolucionário, ou qualquer outra calúnia. Tratavam as vítimas de forma grosseira, colocando frequentemente sobre elas um cartaz de denúncia ou um chapéu de orelhas burro, indicando estupidez e atraso mental. Entretanto, a multidão cuspia na vítima, espancando-a e atormentando-a repetidamente. Por vezes, amarravam as pessoas e manchavam os seus corpos e rostos com lama e fezes de animais. Figuras públicas caídas em desgraça desfilavam frequentemente nos estádios para que fossem insultadas e humilhadas por grandes multidões.
Os espectadores não estavam porém a salvo. Qualquer testemunha que não se juntasse à denúncia ou ao insulto corria também o risco de ser acusada de pensamento contra-revolucionário e assim isolada e envergonhada. A pressão psicológica era intensa para que amigos, vizinhos e familiares das vítimas participassem nestes rituais horríficos.
Os primeiros alvos de Mao foram os professores. No início, ele alertou para os elementos contra-revolucionários na educação. O objectivo era confrontar os guardas vermelhos com os seus professores, garantindo-lhes imunidade e dispensando-os de assistir às aulas. A primeira vítima desse “Agosto Vermelho” de 1966 foi um director adjunto de uma escola secundária em Pequim. Quando os Guardas Vermelhos cercaram Bian Zhongyun, torturaram-na e espancaram-na até à morte, acusando-a de ser uma inimiga da revolução. Os professores foram capturados em massa por estudantes que os submeteram a sessões de luta e à difamação pública do seu carácter.
Fontes oficiais colocaram o número de mortos desse primeiro mês em 1.772, mas é provável que a estatística seja bem mais elevada. Estas não foram execuções oficiais, mas sim mortes devidas à crueldade destemperada da Guarda Vermelha. A era da Revolução Cultural foi globalmente responsável por 7,731 milhões de mortos na China, segundo o professor de ciências políticas R.J. Rummel. Não sabemos qual o número relacionado com as sessões de luta, embora estimativas de cerca de um milhão de mortos sejam apontadas a estas manifestações de turba.
Muitas vítimas cometeram suicídio após as degradações. Algumas suicidaram-se antes. A insana intensidade do terror deveu-se também à natureza arbitrária das acusações. A violência foi aleatória e a vítima não precisava de ser culpada de nada. Uma simples suspeita levantada por um membro da turba seria suficiente.
Mao adaptou a ideia de sessões de luta da União Soviética. Conhecidas inicialmente como “sessões de crítica e autocrítica”, foram utilizadas para testar o empenho dos comunistas. Segundo o historiador de Oxford David Priestland, os académicos eram “trabalhados” ou sujeitos a interrogatórios agressivos em reuniões públicas; quando se descobria que estavam em erro, tinham de confessar os seus pecados.
Muito do terreno em que foram edificadas as sessões de luta foi arado antes da Revolução Cultural, durante uma campanha chamada “Cumprimento da Nova Lei do Casamento”, desenvolvida em 1950. Algumas mulheres saudaram a proibição da poligamia. No entanto, quadros comunistas destruíram milhões de casamentos ao incitarem as esposas a queixarem-se contra os seus maridos, instigando enormes tensões entre as famílias. As crianças eram também obrigadas a denunciar os seus pais. A vigilância e denúncia entre vizinhos foi um factor determinante. Seguir-se-iam reuniões de luta pública que exageravam e amplificavam as brigas familiares.
O objectivo declarado era o de eliminar o “carácter de classe” do casamento. Mas a verdadeira intenção era a de quebrar a coesão familiar e abolir qualquer relação que pudesse competir com o estado. Isto era feito retroactivamente através da dissolução e anulação de milhões de casamentos que tinham sido combinados entre famílias, ou que envolviam dotes, antes da revolução comunista. E se os cônjuges provinham de duas classes diferentes, o cônjuge da classe inferior era pressionado a divorciar-se.
Um relatório afirmava que muitas esposas se enforcaram após regressarem de reuniões de luta em que foram obrigadas a queixar-se contra os seus maridos. Outras que pediram o divórcio voltaram e foram mortas por eles. Segundo Rummel, uma estimativa conservadora das mortes resultantes da aplicação da lei do casamento nos anos 50 e das sessões de luta a ela associadas é de quinhentos mil a um milhão.
Mao enfatizou o processo da sessão de luta num capítulo do Pequeno Livro Vermelho das suas citações intitulado “Crítica e Autocrítica”. Ele afirmou que tais lutas são um processo interminável porque os comunistas têm de purificar continuamente o seu pensamento e exigir pureza no pensamento dos seus camaradas. As mentes precisam de ser “varridas e lavadas” regularmente, a fim de evitar “incursões de germes e outros organismos”.
Este processo é uma parte crucial do que Mao referiu como “moldar” o revolucionário, sujeitando a personalidade individual ao quadro colectivista. O objectivo era expor os erros do passado “sem poupar a sensibilidade de ninguém”. O líder chinês comparou o policiamento do pensamento a um cirurgião que salva um paciente através da remoção de um apêndice infectado. Esse era o spin dado às sessões de luta: eram terapias medicinais para fortalecer os camaradas e unificar o Partido. Mas o efeito pretendido, claro, era o de induzir o cumprimento cego, quebrando o sentido de auto-estima das vítimas e impondo a conformidade nos públicos que testemunhavam o processo.
Acontece que não é de todo destituída a comparação entre a cultura de cancelamento do início do século XXI e as as sessões de luta maoista. Hoje temos linchamentos de “alta tecnologia”, para usar a terminologia retirada do discurso de nomeação para o Supremo Tribunal americano, escrito em 1991, por Clarence Thomas. As características centrais são as mesmas: difamação pública, ridicularização e pressão de turba no sentido de forçar a vítima a recitar o pecado de dissidência contra a narrativa.
E este fenómeno é transversal sobre múltiplos temas da vida política e social contemporânea: dDo fenómeno Black Lives Matter à pandemia e aos seus mandatos, da guerra na Ucrânia ao movimento Me Too, das questões LGBT ao aborto, somos pressionados a aceitar, sem questões nem reticências, conceitos que são subprodutos políticos, mesmo quando disfarçados por argumentos científicos, defendidos em nome da dignidade humana ou empacotados em embalagens de tolerância e justiça social.
Poderemos não assistir ao mesmo nível de espancamentos e de violência de rua e de mortandade que a Guarda Vermelha realizou. Mas as multidões aglomeram-se nas redes sociais ao som da propaganda actual, apelando à deploração daqueles que não cumprem. Em muitos casos, como o da vacinação, milhões de pessoas foram forçadas a cumprir com a doutrina dos poderes instituídos, sob pena de perderem o seu sustento e o seu estatuto na sociedade. Esta situação específica é até de arrepiante assertividade na comparação com a Revolução Cultural, já que implica de facto a morte, numa escala que é neste momento indeterminável mas que se pode calcular em muitas centenas senão milhões de pessoas, terminalmente vitimizadas pelos efeitos adversos das vacinas Covid, como tem sido documentado pelo Contra-Cultura.
Além disso, o aparecimento de um crescente desrespeito pelos processos do Estado de Direito e pelas garantias constitucionais por parte dos líderes e burocratas dos governos ocidentais agrava o efeito arrepiante das campanhas de difamação conduzidas pelos meios de comunicação social. Em Inglaterra e na Alemanha, são presos por delito de opinião milhares de cidadãos por ano e nos Estados Unidos centenas de pessoas que pensavam estar a protestar pacificamente contra a fraude eleitoral no Capitólio, a 6 de Janeiro de 2021, acabaram detidas arbitrariamente, sem data de julgamento, sendo que alguns foram até colocados indefinidamente em isolamento e provados de cuidados médicos.
Nada é assim tão radicalmente diferente, em termos dos métodos e dos efeitos, das sessões de luta aplicadas pelas turbas da Revolução Cultural. O que mudou foi o seu alcance global e tecnológico; circunstâncias que, na verdade, só contribuem para amplificar e fortalecer o método.
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