“Podemos pensar que através do êxtase é possível aceder a um mundo tão distante da realidade como o dos sonhos.”
Salvador Dali
Um dos territórios mais cobiçados pela arte do século XX é o onírico. Logo nas primeiras décadas, surrealistas, modernistas e futuristas dedicaram-se à insustentável procura pela coreografia dos sonhos, tanto como à temerária inquisição gráfica dos pesadelos. As suas perseguições foram porém inconclusivas. O sonho é por definição intangível, irrecuperável, volátil.
Salvador Dali, que cumpriu vezes sem conta essa peregrinação, que experimentou todo o tipo de métodos para atingir o graal da mais pura e involuntária irracionalidade, foi, porventura, o artista que mais se aproximou de concretizar o inconcretizável, embora, a sermos honestos com ele, a sua arte resultava mais de um esforço no sentido da liquefacção do mundo material do que da cristalização das probabilidades etéreas.
A solução que antes tinha sido encontrada para captar esses cenários do inconsciente, espécie de batota das artes visuais, passou pela difusão impressionista do real: se não podemos aspirar à representação do cosmos abstracto que vive dentro de nós com total autonomia criativa, talvez a distorção da envolvente concreta cumpra uma aproximação verosimilhante. Esta metamorfose do facto em artefacto não completa ainda assim a viagem ao país de Alice: a sorridente Alphonsine Fournaise, de Renoir, não é a Rainha de Copas.
Pulando na linha cronológica para a os meados do século XX, o neo-realismo primeiro, com a sua obsessão de vistas curtas pela materialidade da intervenção social, e e o pós-modernismo, depois, empenhado na sua missão niilista e derrotista de reduzir a cinzas qualquer avanço da imaginação humana no sentido de um ideário ético e estético, cancelaram o sonho da representação do sonho.
Alheio aos modernismos primeiros e últimos da sua época, e avesso a qualquer influência realista, Maxfield Parrish (1870-1966) preferiu voltar atrás para conseguir seguir em frente: anacrónico classicista e inveterado dissidente, criou um palco-mundo apenas seu, teatro de fantasias saturadas onde reina a possibilidade onírica.
“O modernismo abstraccionista consiste em 75% de explicação e 25% de só Deus sabe o quê!”
Maxfield Parrish
Extremamente bem sucedido durante toda a sua longa e produtiva vida, o pintor e ilustrador norte americano desobedeceu, com a arrogância de quem sabe perfeitamente de onde vem e para onde vai, a qualquer maneirismo contemporâneo. Pintava o que queria pintar da maneira que queria pintar e aproveitava todas as oportunidades que tinha para fazer da sua arte um produto de massas: capas de revistas, calendários, postais de aniversário, posters, nenhum veículo era indigno da sua excessiva e profícua actividade. Em 1925 foi calculado que pelo menos um em cada cinco americanos tinham em casa algum material impresso com uma imagem criada por Parrish.
“Sempre me considerei um artista popular.”
Maxfield Parrish
Apesar do carácter mainstream e publicista de muitas das suas obras, o iconoclasta de New Hampshire nunca comprometeu o seu manifesto artístico: a exploração cromática de ambientes vibrantes, quase alucinogénicos, a presença de personagens élficos em composições de tocante inocência kitsch, a utilização da natureza como motor mágico de coreografias aparentemente inspiradas em quimeras de mil e uma noites, a insistência em ambientes irreais e etéreos, a saturação sensorial como veículo de transcendência para o observador. Parrish estava empenhado em elevar o seu público até às terras do nunca. E nunca desse transporte desistiu.
“A parte difícil é a de compor a imagem de forma a oferecer aos outros aquilo que te aconteceu a ti. Modelar em pintura uma experiência, sugerir a sensação de luz e cor, de ar e espaço.
Maxfield Parrish
Sem ambições filosóficas para lá da afirmação dessa prodigiosa agência de viagens, Maxfield Parrish conseguiu, por uma vez na história da arte e durante os 50 anos de carreira, representar a matéria onírica, e nessa fabulação fantasmática, atingir geografias de ficção acessíveis apenas a um selecto clube de génios, mas que através da sua generosidade invadiram o imaginário pop.
Afinal é possível desenhar os sonhos, essas paisagens enigmáticas de que somos involuntários inquilinos.
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