Um dos problemas fundamentais de que padecem convulsivamente até os melhores filmes de guerra de Hollywood, é o cinismo com que abordam o tema. Por uma lado, utilizam os horrores dos conflitos militares como uma máquina de imprimir dinheiro, mas por outro mostram-se invariavelmente críticos das iniciativas belicosas levadas a cabo pelo seu país. Conseguem assim ser, em simultâneo, propagandistas da máquina de guerra americana e pacifistas militantes, fazendo um esforço monumental para parecerem sérios no processo.
Sendo certo que a indústria cinematográfica americana foi capaz de umas quantas obras-primas dentro deste género fílmico, a dúbia filosofia que preside às produções tem impacto contundente no seu resultado artístico, que, com o correr das décadas tem vindo a decair para o zero absoluto. Até porque na verdade todos sabemos que Hollywood adora o Pentágono e que o Pentágono reverencia Hollywood.
Assim sendo, há que dar uma pancada na bússola e partir para outras geografias, e como falamos de filmes de guerra, o cinema russo, que será sempre herdeiro de Tolstoi, vem muito a propósito. Até porque está neste momento a passar, por ironia no canal Hollywood, uma fita que é, no sentido filosófico, muito pouco hollywodesca. Mesmo apesar de ter sido distribuída pelos senhores da Columbia/Sony.
Stalingrad, realizado por Fedor Bondarchuk e lançado em 2013, é um poderoso exercício criativo sobre a batalha que determinou em definitivo o desfecho da II Guerra Mundial, na frente leste e não só, e que, nesse sentido, influenciou o destino de todos nós, que hoje vivemos indiferentes sobre os inomináveis sacrifícios a que, entre 23 de Agosto de 1942 e 2 de Fevereiro de 1943, foram submetidos os soldados que ali combateram e que ali morreram. As baixas decorrentes deste inenarrável momento histórico estimam-se em cerca de dois milhões de almas e este pavoroso facto estatístico, por si só, diz quase tudo o que é preciso dizer sobre a natureza selvática da contenda.
Com a excepção das primeiras sequências e de uma ou outra panorâmica sobre o gigantismo épico e tenebroso do teatro de operações, Fedor Bondarchuk opta por fechar o plano numa das praças do centro da cidade (a que tem no seu centro a icónica “Fonte da Dança das Crianças”), onde dois pelotões inimigos travam um combate íntimo, corpo a corpo, esquina a esquina, vala a vala, que aliás caracteriza a experiência que viveram em Estalinegrado os desgraçados que lá lutaram. E faz isto não só por rigor formal, mas para criar o ambiente adequado às várias histórias de amor com que vai entrecortando a violência sistémica da situação e que na verdade constituem o tema central da narrativa. O amor que cinco soldados russos dedicam a Katya, uma jovem rapariga que encontram num prédio onde montam barricada, o amor que um oficial alemão encontra no corpo alvo e na alma vencida de uma mulher russa, o amor à pátria, intenso e niilista, partilhado por todos. Enquanto se degladiam ferozmente pela conquista de mais um metro, pela tomada de mais um prédio, pela sobrevivência de mais um dia, combatem também e com semelhante determinação para manter a sua humanidade. A certeza da morte e os horrores indescritíveis da guerra não destroem as virtudes e os afectos que conseguem descobrir no labirinto das suas almas, a cada momento em que as armas se calam.
Stalingrad oferece ao espectador, com constância, generosidade e virtuosismo, sequências de acção brutais e momentos enternecedores. Entre a entrega ao ódio e o triunfo da ternura, as paixões revelam-se interactuantes, num jogo de destruição mútua em que se descobre, afinal, uma hipótese de redenção: o filho de Katya irá salvar, 66 anos mais tarde, um grupo de turistas alemães que ficaram soterrados em Tohoku, quando a região foi assolada pelo terramoto, seguido de tsunami, em 2011.
Muito do que este filme tem de excelente passa, contrariando os maneirismos hipócritas da indústria americana, pela sua total e quase ingénua sinceridade. Os soldados russos não estão ali, naquele inferno, contrariados. Sabem do seu dever, e são convictos protectores da mãe Rússia. Os soldados alemães são também seres humanos, que estão ali por razões semelhantes. Não há pacifismos de sofá nem hesitações sobre a dedicação à pátria. Não há criticas subliminares ou não tão subliminares como isso. Não há reticências nem comentários ácidos a Estaline ou a Hitler. Há ordens que é preciso cumprir. Há carinhos que é preciso expressar. Há o inimigo que é preciso matar. O destino não tem nada a ver com política.
Os personagens são trabalhados com carinho e detalhe, percebemos as suas motivações com clareza, perdoamos-lhes as suas fraquezas sem recurso a complicadas ginásticas de consciência e não há maneira de escaparmos à sua profunda humanidade. Visualmente irrepreensível, cenografado como uma tela do barroco e dirigida com delicadeza e sensibilidade, a fita está, como seria de esperar, carregada de literatura por todos os lados e o guião podia ser retirado de “Vida e Destino” de Vasily Grossman, mesmo apesar de ter sido significativamente reescrito por Sergey Snezhkin nas vésperas do início das filmagens.
Além de tudo o resto, neste filme os russos falam russo e os alemães falam alemão, o que é sempre bom para o espectador que não é anglo-saxónico e não tem, por isso, fobia de legendas e gosta, como é normal, que os personagens se exprimam na sua língua nativa.
Considerando a decadência e o miserabilismo dos conteúdos disponibilizados pelos serviços por cabo que pagamos caríssimos, Stalingrad é, por uma vez, um boa razão para ver televisão.
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