Tudo, ou quase tudo o que a Netflix produz é carregado de ideologia e é a ideologia que preside sobre qualquer outro critério às séries e aos filmes e aos documentários que encontramos neste servidor de propaganda.
Ainda assim, vale a pena desmontar as mentiras, imprecisões e desvios à realidade dos factos que a nova série “Monstro: a História de Jeffrey Dahmer” impinge ao subscritor deste envenenado serviço de streaming. De acordo com recentes declarações de Anne E. Schwartz, a jornalista que reportou pela primeira vez a sensacional história, há mais de três décadas atrás, a história está muito mal contada.
The new Jeffrey Dahmer series by Netflix sacrificed accuracy for the sake of drama, according to the journalist who first broke the sensational story over three decades ago.https://t.co/XLLCzSoN79
— The Independent (@Independent) September 29, 2022
Anne E. Schwartz disse ao The Independent que os cineastas enveredaram pelo caminho da “licença artística”em muitos detalhes chave e que:
“A série não tem muitas semelhanças com os factos do caso”.
Acontece que a produção não aparenta constituir um trabalho de ficção, mas sim um retrato realista não só do infame serial killer, responsável por 17 assassinatos, mas também da sociedade que o produziu. Se os factos estão errados, esse retrato não é credível. E a intenção da Netflix de transformar a história de Dahmer numa crónica sobre o racismo do homem branco americano fica reduzida ao mais espúrio activismo político.
Anne E. Schwartz trabalhava como repórter criminal para o Milwaukee Journal em 1991, quando recebeu uma chamada de uma fonte policial que a alertava para o facto da polícia ter encontrado uma cabeça e partes de corpos humanos num apartamento da cidade. Apressando-se a chegar ao local, Schwartz disse ter encontrado apenas alguns agentes da polícia no edifício dos Apartamentos Oxford, onde entrou para dar uma vista de olhos.
“Fui até ao apartamento de Dahmer, e espteitei lá para dentro, porque um jornalista quer saber. Acho que o que era estranho era que nada parecia estranho”.
Segundo a jornalista, os agentes começaram lentamente a compreender a magnitude da cena do crime à medida que descobriam as polaroids que Dahmer tinha tirado às suas vítimas, em várias fases de desmembramento.
“Eles não sabiam o que estavam a encontrar.”
A série faz referência, repetida vezes sem conta, ao cheiro a decomposição de corpos que provinha do apartamento de Dahmer. Mas parece que esse nem sequer era o cheiro que dessa apartamento provinha.
“Fui repórter criminal durante cinco anos, por isso sei a que cheira uma casa com um cadáver ou um corpo em decomposição. Isto não era isso. Isto era um cheiro muito químico”.
Para além de reportar em primeira mão a história, Anne E. Schwartz escreveu dois best-sellers sobre os assassinatos. Sabe do que está a falar e afirma nesta entrevista que a representação dos agentes da polícia da cidade como racistas e homofóbicos, um sublinhado constante na séria da Netflix, é incorrecta.
“Passei muito tempo com eles. É claro que (a série) é uma dramatização, mas numa altura em que não é exactamente fácil para as forças da lei conquistarem confiança junto da comunidade, não é uma representação muito útil. Nem rigorosa.
A aparente incompetência da polícia, que é caricaturizada até à exaustão, não tem em conta circunstâncias perturbadoras da sua actividade como as que são decorrentes daquele que é conhecido como o “Efeito Fergusson”, em que a redução do policiamento proactivo se deve à desconfiança e à hostilidade da comunidade em relação à polícia e que é frequente nos guetos dos grandes centros urbanos dos Estados Unidos e não só.
Na produção da Netflix, Glenda Cleveland, que tentou alertar a polícia para a onda de assassinatos de Dahmer, é uma personagem central, apresentada como vítima e heroína e retratada como vivendo num apartamento imediatamente contiguo ao de Dahmer. Na realidade, Glenda Cleveland, que morreu em 2011, vivia num edifício separado do prédio onde o assassino residia. Quase todas as extensas sequências dedicadas a esta personagem são assim, falsas.
“Nos primeiros cinco minutos do primeiro episódio Glenda Cleveland bate à porta de Dahmer. Nada disso alguma vez aconteceu. Tive logo problemas com a narrativa, porque sabia que isso não era exacto. Mas acho que as pessoas não estão a ver a série como um documento, estão a vê-la como entretenimento”.
Aqui, Anne E. Schwartz é capaz de estar equivocada porque a série não oferece à audiência qualquer sinal de que está a construir ficcionalmente sobre factos reais, muito pelo contrário: toda a estrutura da narrativa é montada como um relato fidedigno dos acontecimentos. As pessoas podem consumir este produto televisivo como entretenimento, mas isso não quer dizer que não fiquem com a ideia de que o que estão a ver corresponde à realidade.
Depois de publicar o primeiro livro sobre o caso, The Man Who Could Not Kill Enough, a jornalista recebeu um telefonema de Dahmer na redacção de uma estação de televisão onde trabalhava. O psicopata reclamava pela responsabilidade do seu comportamento ser atribuído aos seus pais, outro sublinhado da Netflix.
“Ele detestava isso. Para alguém que não mostrava qualquer emoção ou preocupar-se fosse com o que fosse, era muito protector em relação aos seus pais, especialmente em relação à sua mãe. O telefonema foi muito rápido, e muito directo ao assunto: que ninguém era responsável pelas suas acções, excepto ele próprio”.
Schwartz declarou ainda que Dahmer era muito “astuto” na forma como seleccionava as suas vítimas, conversando longamente com elas em bares e na rua para ganhar a confiança de homens que estavam à margem da sociedade, e cujo desaparecimento não fazia soar nenhum alarme. Isto, juntamente com as suas técnicas horríveis de eliminação de corpos, ajudou-o a escapar ao assassinato de 17 rapazes e homens antes que os seus crimes fossem descobertos. Além disso, as vítimas de crimes na comunidade gay em Milwaukee nos anos 80 e início dos anos 90 raramente denunciavam crimes à polícia por medo de retaliações e de que a sua vida sexual lhes causasse problemas familiares, sociais e profissionais.
Neste sentido, a tese da Netflix de que os assassinatos se deveram a racismo e homofobia, tanto da parte da polícia como do assassino e da sua família são completamente despropositadas. A mãe de Dahmer trabalhou como assistente social e nunca foi acusada de qualquer atitude racista ou homofóbica. Dahmer era homossexual, pelo que não podia ser homofóbico. E sempre disse que não matava por racismo mas porque se sentia sexualmente atraído por homens negros, que depois assassinava de forma a obter um controlo definitivo sobre os seus amantes. Além disso, o perfil demográfico do bairro onde vivia e dos bares dessa zona da cidade que frequentava eram predominantemente habitados por negros, pelo que é apenas consequente que a maior parte das suas vítimas fossem dessa etnia. Antes de viver nesse bairro, Dahmer também assassinou brancos, embora a Netflix tenha decidido que apenas as vítimas negras e as suas famílias são dignas de protagonismo e pesar.
Os últimos episódios da série são um verdadeiro e despropositado manifesto “Black Lives Matter”, agudizados por uma subliminar mensagem de que “white lives don’t matter”. E é precisamente aí que a série, supostamente anti-racista, se torna completamente racista.
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