De Liverpool para o mundo. Com vontade incendiária.
Todos sabemos que Liverpool é uma capital mundial do Pop Rock. Para além dos Fabulosos Quatro que practicamente inventaram a música popular inglesa como a conhecemos hoje, o distrito de Merseyside foi produzindo fenómenos orquestrais em abundância, numa lista infindável de bandas marcantes onde se destacam, talvez, estas: Orchestral Manoeuvres in The Dark, The Teardrop Explodes, Echo & The Bunnymen, The Flock of Seagulls, Frankie Goes to Hollywood, Elvis Costello, It’s Immaterial e The Rascals.
Em comum, estas bandas (com a excepção da última, formada no redondo ano de 2000) têm o facto de pertencerem ao arquivo do século XX. Não porque em Liverpool já não haja quem arranhe guitarras e estique cordas vocais, mas porque esses exercícios de ginástica melódica parecem, nas duas últimas décadas, condenados ao anonimato.
A excepção contemporânea a essa sina são os The Wombats. Depois de alguns anos em incubadora, estes três imberbes rapazes lançam em 2007, para espanto e apoteose da audiência global, “A Guide To Love, Loss and Desperation”, um manifesto histriónico e transbordante de vitalidade, espécie de pedrada no charco da Brit Pop da altura. Integrando um punhado de hinos como “Let’s Dance to Joy Division”, Kill the Director” ou “Moving to New York”, este disco é um acerto de contas de Liverpool com a história da música popular, um remate certeiro à primeira tentativa, com a baliza a cento e cinquenta metros, que explodiu nos charts e fez da banda um marca incendiária, da noite para o dia.
Entre 2007 e 2018 os Wombats deram continuidade ao seu retumbante pontapé de saída com três sólidos, consistentes e comercialmente bem sucedidos trabalhos de estúdio. A capacidade lírica e vocal de Matthew Murphy continuou em bom plano e a banda, fiel aos seus pressupostos conceptuais, que oscilam entre o pop independente, o pós punk e a pista de dança, manteve os níveis criativos e rítmicos no seu devido patamar olímpico, produzindo temas épicos como “Techno Fan”, “Greek Tragedy”, “Lemon to a Knight Fight”, “Turn” ou “I Don’t Know Why I Like You But I Do”.
O regresso feliz com um disco maturo e filosoficamente atrevido.
Em Janeiro de 2022, os Wombats decidiram agraciar os seus fãs com aquele que será talvez o seu mais bem sucedido disco de sempre: uma semana depois do lançamento, “Fix Yourself, Not the World” atingiu o topo dos álbuns mais vendidos no Reino Unido. Mas como sempre acontece com estes rapazes, o triunfo comercial não teve implicações no delírio harmónico nem no turbilhão criativo. Senão vejamos:
Há uma quantidade enorme de razões pelas quais este disco é digno de elogios. É muito bem escrito, muito bem tocado e muito bem produzido, como todos os discos dos Wombats. É um disco politicamente incorrecto e filosoficamente assertivo, cujo título parece inspirado nos ensinamentos do Jordan B. Peterson. É um disco carregadinho de grandes temas. É um disco ilustrado com bem conseguidos conteúdos gráficos e videográficos, o que nos tempos que correm é dizer muito. E ainda por cima, é um disco que faz a crítica dos carros do Sr. Musk, daqueles que se conduzem sozinhos:
Além disso, e algo surpreendentemente, dado o vazio cultural e filosófico dos tempos que correm, o último trabalho dos Wombats é a prova provada que ainda conseguimos encontrar verdades absolutas em canções pop contemporâneas, se procurarmos por elas e soubermos escutar. “People Don’t Change People, Time Does” é um caso paradigmático. Que não surpreende, já que o conteúdo lírico das canções desta palavrosa banda é, com tremenda e assertiva frequência, brilhante.
And we’re all trying to get better
And we’ve all had quite enough
Of this pleasant displeasure
But people don’t change people, time does
A propósito de excelentes letras, o tema “Worry” é uma delícia para qualquer audiente que, depois de tomar a célebre pílula vermelha de Morpheus, passe a encarar as teorias da conspiração como forma de chegar a verdades objectivas sobre a realidade em que foi mergulhado:
“It’s not, it’s not, it’s not paranoia,
if it’s really there.”
Se os Wombats forem parar ao inferno, não é má ideia ir atrás deles.
Como curadores dos males da existência que são, os Wombats apresentam sempre um leque de soluções terapêuticas. E como máquina de debitar boa música e versos inspirados, o trio de Liverpool nunca desilude e não é certamente com “Fix Yourself, Not the World” que o seu registo sofre perturbações na qualidade poética. O refrão daquele que será talvez o tema mais poderoso de todo o álbum é pura lírica pop:
Everything I love is going to die
So baby keep your big mouth shut and stop wasting my time
Icarus was my best friend
So I’m gonna make him proud in the end
Everything I love is going to die
Is going to die
E para aqueles que, por estes dias, sentem que estão a bater mal, os Wombats trazem alívio para a angústia, argumentando que essa disfuncional batida decorre da sistematização que é feita da realidade. Nenhum louco é, só por ser louco, alienígena; todos os malucos fazem parte da humanidade e mesmo para se ser um doido varrido é preciso experimentar a inteligência. Há um método para a loucura e vai daí, esta balada lindíssima.
É por estas e por outras que é aconselhável seguir no trilho dos Wombats, mesmo que eles acabem os seus destinos em sítios antípodas ou inóspitos. Porque mesmo que só tivessem editado este prodigioso disco, o peregrino que siga nessa sagrada senda encontrará redenção melódica. Por esta qualidade de música ligeira, dá-se a volta ao mundo, se for preciso, à procura do bem que faz aos tímpanos, à procura dos acordes que ficam no cantar dos dias.
Esta é uma banda que vai estar sempre do lado de quem a sabe apreciar. Mesmo que para isso seja preciso mudar a geografia da vida.
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