“A minha História foi composta como uma aquisição para a eternidade, não para ser ouvida por ocasião do triunfo, na competição de um dia.”
Tucídides
Tucídides (460 – 400 a.C.), general da Guerra do Peloponeso (431- 404 a.C.), que opôs Atenas a Esparta, será, a par de Heródoto, um dos primeiros historiadores da civilização ocidental. É sobre este ilustre personagem e a sua obra, “História da Guerra do Peloponeso”, que Michael Sugrue desenvolve a eloquente que prelecção que destacamos hoje.
Activamente envolvido nos acontecimentos históricos que relata e conhecendo pessoalmente muitos dos seus intérpretes, Tucídides encontrou-se numa excelente posição para edificar o relato deste decisivo conflito helénico. Mais a mais, o general, influenciado pela escola sofista que dominava na altura a cultura das elites atenienses, era um fervoroso defensor do entendimento da realidade pelo recurso à razão, às evidências disponíveis e à prosa fundada na ciência retórica, ao invés do recurso à tradição homérica, mitológica, figurativa e redigida em verso.
Esta ideia de uma reportagem objectiva da guerra, da natureza humana, do jogo político e da relação de poderes não compreende lições de moral nem finais felizes, até porque Atenas acabou por sair derrotada do sangrento conflito de 24 dolorosos anos. O relativismo ético dos sofistas, aliado ao seu pragmatismo empírico, traduz-se pela pena do iniciático historiador ateniense numa obra secular, onde os caprichos dos deuses sucumbem perante o poder dos homens, e a virtude colapsa perante a força das circunstâncias e os horrores do conflito bélico. Se a obra de Homero, que procura encontrar ordem sobre o caos e transcendência acima das vicissitudes da vida, pode ainda fazer algum sentido em tempos de paz, não serve de todo para descrever os eventos da guerra.
Por oposição aos super-heróis da Ilíada e da Odisseia, personagens que habitaram em simultâneo o imaginário histórico e mítico da civilização helénica até essa altura, Tucídides pretende rivalizar com Homero na educação dos gregos, propondo uma abordagem mais plausível da condição humana, da vida política e militar e das relações de poder nas sociedades. Os actos divinos e as virtudes heroicas são descartadas como irrealistas e substituídas pelas contingências materiais e pelas ambiguidades de carácter do homem concreto, que é o actor da História.
Como Sócrates, seu contemporâneo, o general quer dessacralizar e racionalizar o real. Mas se o moscardo de Atenas perguntava por saídas morais que elevassem os cidadãos ao bem absoluto, Tucídides mostra-se céptico sobre a viabilidade de ideais utópicos e valores transcendentes.
Em plena idade de ouro da cultura ateniense – a de Péricles – a democracia serve de exemplo para o cauteloso e ponderado relativismo com que a condição humana – e o seu acidentado percurso sobre as eras – deve ser analisado: as virtudes indiscutíveis de um regime aberto ao livre arbítrio e à vontade política do cidadão têm o seu reverso: a demagogia, o imediatismo, a cedência à ira da multidão, a fragilidade e volatilidade das instituições e a indisciplina filosófica nas questões de estado podem levar – e no caso ateniense levaram de facto – à ruína da nação. Confrontada com um inimigo determinado, cujo regime tirânico não admitia a dúvida ou a dissidência, Atenas acabou por ceder a essa força monolítica, muito porque no seu seio deixou grassar a divisão, que é própria dos regimes democráticos.
Também influenciado pelo primitivo espírito cientifico de Hipócrates, que ainda hoje é considerado o “pai da medicina”, Tucídides não só introduz uma visão secular da natureza e do homem, como contribui para o seu estudo objectivo. Quando Atenas é atingida pela peste, consequência inevitável das guerras até ao século XX, o historiador foi um dos primeiros estudiosos a notar que as pessoas que sobreviviam às epidemias eram poupadas durante os surtos posteriores da mesma doença, análise fundamental que num futuro remoto sustentaria os esforços conducentes à vacinação.
Ainda sob a égide de Hipócrates, Tucídides considera que os problemas intestinos – políticos, sociais e económicos – que Atenas exibiu durante os anos da guerra deviam ser diagnosticados e dissecados como uma doença, de forma a que, persistindo no estudo das suas relações de causa e efeito, se pudessem encontrar curas que aliviassem as sociedades do seus crónicos males.
Sendo um produto de vanguarda no contexto da sua época, é óbvio que a “História da Guerra do Peloponeso” foi construída com recursos programáticos e filosóficos muito diferentes do que aqueles que presidem à disciplina nos dias de hoje. Logo porque o autor redigiu a obra nos 20 anos que sucederam ao evento, participando até no seu enredo; depois porque a qualidade e elegância da prosa, que respeita e eleva a oratória sofista a patamares recordistas não é, infelizmente, um requisito dos académicos contemporâneos; e finalmente porque as evidências não são documentais mas sim testemunhais. O historiador clássico, como também fez Heródoto, não tem materiais arqueológicos nem literatura académica a que possa fazer referência. Por isso, visita locais e interroga pessoas, filtrando dos seus testemunhos elementos subjectivos como a nacionalidade, o preconceito e os lapsos de memória para construir um relato fidedigno dos acontecimentos.
E mesmo quando, reconhecendo a impossibilidade de reproduzir textualmente os muitos discursos proferidos por uma multitude de personagens no decorrer da acção, o autor acaba por ficcionar a oratória, o recurso à indução, a um sofisticado conhecimento das leis da retórica e ao domínio dos contextos bastam para se convencer a si próprio, e aos seus leitores, da veracidade dessas reconstituições. Mesmo quando inventa um monólogo ou um diálogo, Tucídides acredita que está a ser rigoroso com a verdade histórica.
O seu compromisso de repórter credível não pode ser mais sério, na medida em que considera o tema da sua obra de monumental importância: nem Troia nem as Guerras Médicas se comparam, em termos de recursos logísticos e humanos colocados em campo, com o conflito do Peloponeso.
Pejados de pérolas literárias como a “Oração Fúnebre de Pericles” – um elogio do líder esclarecido e da sua democracia moderada e resiliente – os oito volumes da História da Guerra do Peloponeso agregam elementos da tragédia, da epopeia, da retórica e do relato histórico, num quadro filosófico realista, que configura uma das grandes conquistas intelectuais da cultura helénica.
No livro 5, o Diálogo Meliano, uma das mais belas e brutais passagens da obra, que relata a revolta na ilha de Melos, o autor expõe com máxima eloquência, embora num tom frio e distante perante o drama que se desenrola, a doutrina a que na modernidade chamamos “Realpolitik”: reagindo prontamente à sublevação dos cidadãos dessa ilha, os atenienses enviam uma poderosa expedição militar para punir a ousadia e exigem a rendição incondicional dos melianos revoltados com argumentos exclusivamente fundados na diferença das forças em presença. Não porque clamem pelo respeito de um qualquer código moral, não porque defendam o seu lado na guerra como o mais virtuoso, mas, muito simplesmente, porque são mais fortes. Quando os revoltosos, empenhados em perseguir um ideal libertário, recusam a recondução ao jugo a que tinham sido submetidos, são exterminados. Todos. Mulheres e crianças, também. O povo meliano e a respectiva nação cessam de existir.
O pragmatismo frio e calculista de um general que perdeu a única batalha que travou na guerra que retrata, e que por isso foi exilado por 20 anos, tempo e liberdade que aproveitou para levantar a sua obra, deixou um legado que veio a inspirar, muitos séculos depois, outros grandes personagens do pensamento ocidental, como Hobbes, que foi o primeiro a verter a obra do grego clássico original para as línguas modernas, e Maquiavel, que deve ter feito dos oito volumes da obra uma espécie de mesinha de cabeceira.
Tucídides apercebeu-se que no contexto de tempos difíceis resultantes da guerra e da peste, o crescente fanatismo das facções que se degladiavam na arena democrática de Atenas impediram um acordo sobre políticas moderadas e sensatas, mas tendentes à vitória final: o conflito do Peloponeso levou à morte da razão, naquela que era, à época, a capital mundial do pensamento racional.
Ainda por cima, num quadro filosófico e existencial sem referências mitológicas, nada resta ao ateniense quando perdeu esse sóbrio exercício da inteligência reflexiva. E assim, cumpre ao historiador narrar as relações de poder como elas se processam factualmente e não como deveriam, num plano idealista, processar-se. Para que as gerações vindouras aprendam com os erros do passado, as crueldades da guerra e as dinâmicas sociais, nefastas, que promove.
Porque se Tucídides tem concorrência para o estatuto de primeiro historiador da cultura ocidental, é incontestavelmente o primeiro cientista social da história da humanidade.
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