A editora Wilder não foi capaz de publicar a monumental obra crítica de Kant sem um introito politicamente correcto que é das coisas mais ridículas que alguma vez foram levadas à estampa:

 

 

“This book is a product of its time and does not reflect the same values as it would if it were written today. Parents might wish to discuss with their children how views on race, gender, sexuality, ethnicity, and interpersonal relations have changed since this book was written before allowing them to read this classic work.”

 

Há aqui tantos disparates juntos que seria possível escrever uma outra “Crítica da Razão Pura” só a propósito deste curto parágrafo. Vamos resumi-los.

O primeiro disparate é que a editora Wilder parece acreditar que toda a gente contemporânea tem as mesmas e obtusas opiniões sobre raça, género, sexualidade, etnia e relações interpessoais, o que é de uma falsidade chocante. Há milhões de pessoas no mundo que não partilham destes assépticos valores. Nem pouco mais ou menos. O redactor da Open Culture, que expõe o escrúpulo ridículo da Wilder, por exemplo. O humilde redactor deste artigo, outro exemplo.

O segundo disparate é a ideia de que a obra de Kant pode ser perniciosa para os seus estudiosos. A obra de Kant é uma das grandes conquistas intelectuais da história da humanidade. Na disciplina da filosofia só terá paralelo em Platão e, talvez, em Nietzche. Não faz mal nenhum ler o génio de Königsberg, pelo contrário. E, que se saiba, nunca ninguém cometeu uma atrocidade em nome do seu monumental esforço crítico. Entre generais e terroristas, ditadores e genocidas, assassinos e traficantes de droga, polícias e ladrões, assassinos em série e bandidos comuns, não há quem tenha utilizado o idealismo de Kant como justificação para a barbárie. E também desconfio que o Ku Klux Klan não refere os “Prolegómenos a Toda a Metafísica Futura” no seu manifesto de intenções.

O mesmo não se pode dizer, por exemplo, da obra de Karl Marx, embora seja permitido ao espírito crítico de qualquer Sapiens que faça uso da sua espectacular capacidade racional especular que a obra do iniciático socialista não precise, na perspectiva dos editores da Wilder, de introduções assim tão repletas de avisos cautelares.

O terceiro disparate é considerar que o jovem leitor de Kant deve ser sujeito a um aviso prévio dos seus pais sobre os perigos de semelhante literatura. Num ambiente cultural que oscila entre a pornografia e os heróis da Marvel, submeter um filho à prosa do filósofo alemão, sem uma prévia e conveniente lavagem cerebral, parece consubstanciar um risco inaceitável. Acresce que é precisamente este tipo de falsa protecção das criaturas infantes que tem produzido nas últimas décadas gerações de snowflakes, figurinhas hiper-sensíveis a tudo e a mais alguma coisa, radicalmente avessas à opinião discordante, completamente impreparadas para os conflitos da existência, as contradições da filosofia e as desgraças do destino.

O quarto disparate é julgar o discurso de Immanuel Kant à luz dos valores contemporâneos, sejam eles quais forem. Este é um síndroma recorrente nos dias que correm e só é explicável pelo triunfo da imbecilidade endémica e da total ausência de sentido histórico que imperam um pouco por todo lado, nas universidades, nas redes sociais e na imprensa. Atrevo-me a considerar que, felizmente para Kant, os valores da sua época eram menos fascizantes do que são agora, caso contrário não tinha conseguido publicar uma linha que fosse.

O quinto disparate está na infeliz ideia de que os jovens devem ser poupados a escolas de pensamento que não reflectem o mainstream contemporâneo. Primeiro porque a escolástica actual é de uma pobreza constrangedora (enumerem, por favor, cinco grandes filósofos do período 1945-2022), depois porque a aprendizagem da filosofia, como bem ensinava Sócrates, faz-se muito frequentemente através do exercício dialéctico e da exposição ao contraditório.

O sexto disparate consiste na pretensão de que os valores actuais mudaram substancialmente desde que Kant escreveu a sua monumental Crítica. No confortável edifício da sede da Wilder, na Virgínia, é capaz de ser certo que o quadro sistémico do século XVIII alemão esteja um bocado datado. Mas é legítimo calcular que mais de um terço da humanidade viva hoje num ambiente cultural, económico e social que não faz justiça aos direitos, liberdades e garantias do Iluminismo Europeu ou do Idealismo Alemão. Basta registar que na Índia vivem 1.3 mil milhões de pessoas subjugadas ao niilismo genético das castas.

O sétimo disparate é o acto censório que nem sequer é velado: a leitura de Kant implica um controlo parental que é, claro, de ordem eminentemente autoritária e que conduz inevitavelmente a um maniqueísmo assustador. Se o jovem académico precisa de autorização para ler Kant, precisará seguramente de preencher um formulário pidesco para ler todo o resto da filosofia ocidental. No momento em que Kant se torna perigoso, que classificação atribuir a Stirner, Proudhon, Marx, Nietzsche, Schopenhauer, Heidegger? E se desejarmos condicionar os nossos filhos às ideias sobre género, sexualidade, raça e etnia da editora Wilder, como é que podemos permitir que leiam os filósofos da antiguidade clássica?

A solução limpinha é proibir isso tudo. Incendiar as bibliotecas, porque não? A Amazon, que domina o mercado livreiro na América, já começou a trabalhar nesse sentido. Mas o que não faltam actualmente são censores e censurados.

Hoje em dia, toda a gente que não repete a tabuada moral das políticas de identidade será racista, sexista, fascista e – de uma maneira geral – uma má pessoa. Neste sentido, Kant é um tipo horrível.

Por amor de Deus.