Depois de David Lynch ter destruído a obra prima de Frank Herbert e de várias tentativas falhadas que Hollywood tem ensaiado para estragar outra vez essa pérola da ficção científica do Século XX, um dos mais dotados realizadores da actualidade, Denis Villeneuve, decidiu enfim dar corpo à ambição aniquiladora da Legendary Pictures e da Warner Brothers.

Villeneuve não sabe fazer mau cinema. É verdade. E a primeira parte do projecto, agora em exibição, não deixa de ser um trabalho sério, ponderado, bem concebido estética e cenograficamente, que mostra algum respeito pelo espírito do livro, principalmente se considerarmos o histórico desprezo com que Hollywood trata as fontes literárias onde vai roubar os seus chorudos sucessos.

“Dune” não segue a irritante, quando não absurda, obsessão woke do contemporâneo cinema americano; não obedece a maneirismos políticos (salvo os tiques ambientalistas, que de qualquer forma já estão presentes no texto original); não opta por facilitismos narrativos nem por truques de baixo ilusionismo; não recorre aos efeitos digitais pelo elogio espúrio da tecnologia. É até, nesse aspecto, sóbrio o quanto baste. O filme enche o olho, sem dúvida, mas não ostenta, nem cede à tentação da fanfarronice visual.

O casting não é infeliz. Como já tinha demonstrado no excelente “The King”, de 2019, Timothée Chalamet é um competente actor, disfarçando a unidimensionalidade introvertida com a intensidade emocional que sabe transmitir, sobretudo nos silêncios com que enche o ecrã e suspende o espectador. Oscar Isaac serve bem a personagem de duque da Casa de Atreides, Jason Momoa e Josh Brolin estão perfeitos para os guardiões do templo e homens de acção que representam, Stellan Skarsgård desempenha um magnífico vilão como líder dos Harkonnen e até o cabotino Javier Bardem parece confortável na pele de Stilgard.

O complicado enredo de “Dune” é bem tratado pelo guião, que, sem exageros descritivos nem complexidades narrativas, oferece ao espectador um claro contexto situacional que permite o entendimento linear da acção. Os principais personagens estão bem caracterizados e as suas motivações percebem-se perfeitamente. Apesar de longo, o filme não aborrece, e o seu ritmo pausado não diminui o tom épico, encaixando paradoxal e lindamente com a epopeia que é contada.

Apesar de todas estas virtudes, há porém algo que escapa, algo que falta, a este trabalho de Dennis Villeneuve, que não é, afinal de contas e a ajuizar a primeira parte de um projecto com duas etapas, nenhuma obra-prima.

E essa lacuna em “Dune” é afinal comum a grande parte dos poucos filmes decentes que saem de Hollywood nos dias que correm e está na mesma linha deficitária de “Tenet”, a última obra do realizador que compete directamente com Villeneuve para o título de criativo número um da indústria cinematográfica contemporânea: Christopher Nolan. Também neste caso ficamos com a sensação de que há um lance de escadas que faltou cumprir para chegarmos às alturas do registo de eleição.

Esse bocadinho que falta decorre da nefasta influência de uma substância psicossomática extremamente tóxica: o medo. A sétima arte do século XXI (como aliás acontece com as seis disciplinas que a antecedem) não arrisca nada. Não cumpre rupturas, limita-se a papaguear narrativas oficiais porque é institucional e regimental e tem uma obsessão com a segurança, com a civilidade, com o não querer ofender ninguém. Segue protocolos pós-modernos misturados com formalismos estabelecidos há coisa de cem anos atrás e resigna-se a repetir modelos que resultam na bilheteira e nas páginas da crítica. Condena-se a uma certa humildade estilística, a um certo reducionismo criativo em que o produto final tem necessariamente que ser embrulhado.

Parece, às vezes, que “Dune” é um projecto envergonhado da sua própria ambição.

Acontece que esta maneira de fazer cinema dificilmente sobe aos últimos patamares da arte cinemática, onde a glória reside. Dificilmente eleva o espectador ao que é absolutamente belo, absolutamente consolador. Dificilmente oferece ao mundo um novo paradigma artístico. Uma nova definição de cultura. Uma visão singular e original que cative e faça uma revisão crítica do status quo.

“Dune” é uma fita previsível. Rotineira. Certinha. Tudo corre bem, sim. Talvez bem demais para podermos falar em arte.

E neste caso específico, em que tinha tudo a seu favor; neste filme em concreto, em que a produção e a direcção acertam em tantas variáveis, seria de esperar que Villeneuve assumisse o risco e desse um passo em frente, no sentido da obra prima. Não o fez. Que pena.