Revisitando uma edição tripartida da revista Colóquio Letras – de 2004, números 163 a 165 – que traz à estampa o trabalho de tradução que David Mourão-Ferreira desenvolveu sobre a poesia europeia.

 

Al-Mu’Tamid, o rei poeta.

Muhammad ibn ‘Abbad al-Mu’tamid (1040-1095), o terceiro e último rei da dinastia dos Abadidas, governadores da taifa de Sevilha, foi um dos poetas mais importantes do Al-Andalus, tendo ganho a reputação de militar moderado e homem santo. Na sua corte reuniram-se alguns dos maiores estudiosos e homens das artes da época, como o astronómo Al-Zarqali (Arzaquel), o geográfo Al-Bakri ou os poetas Ibn Hamdis, Ibn al-Labbana e Ibn Zaydun.

Nascido em Beja, aos treze anos comanda já um expedição militar que esmaga a revolta de Silves. O seu pai nomeia-o governador da região e é ali que al-Mu’tamid conhece o poeta Ibn Ammar. Entre os dois estabelece-se uma profunda relação passional. Em 1069 al-Mu’tamid sucede ao pai e uma das primeiras coisas que faz é nomear o seu amigo para vizir do reino. Ibn Ammar combate a seu lado na conquista de Murcia e al-Mu’tamid nomeia-o governador daquela região.

Até aqui, um conto de fadas gay. A partir de agora, uma novela gótica. Sucede que Ibn Ammar era um tipo desmedidamente ambicioso, frequentemente apanhado nas malhas da conspiração contra o seu rei. O canalha usaria mesmo as suas habilidades poéticas para escrever uma série de versos que ridicularizavam al-Mu’tamid e a sua amada, I’timad. Sem grande jogo de cintura para a lírica atrevida e já fartinho do crápula, Al-Mu’tamid acaba por prender o ex-amante e, tomado por virulento ataque de fúria, entra na cela onde se encontra o malandro aferrolhado e mata-o com um machado. Zás, que nasce um poeta!

Em 1085, Afonso VI de Leão e Castela conquista a cidade de Toledo, vitória que inflige um duro golpe no Islão peninsular. Cinco anos depois, o costumeiro aliado de al-Mu’tamid nas guerras que se sucederam, ibn Tashufin, não se limita a repelir os cristãos, mas aproveita também para anexar os taifados da península e perseguir os seus mais proeminentes líderes. Al-Mu’tamid é feito prisioneiro e desterrado para Aghmat, perto de Marráquexe, onde passará o resto da sua vida dedicando-se à actividade poética.

David Mourão Ferreira traduz porventura o seu poema mais célebre, lindíssimo tratado lírico e verdadeiro testemunho do apogeu cultural (e lúdico) de Silves.

 

EVOCAÇÃO DE SILVES

Eia, Abû Bakr, saúda os meus lares em Silves
e pergunta-lhes se, como penso,
ainda se lembram de mim.

Saúda o Palácio das Varandas
da parte de um donzel
que sente perpétua nostalgia desse alcácer.

Aí moravam guerreiros como leões,
e brancas gazelas
– em que belas selvas, em que belos covis!

À sua sombra, quantas noites passei
com mulheres de quadris opulentos
e de aparência extenuada!

Brancas e morenas
provocavam-me na alma
o efeito das espadas refulgentes
e das lanças escuras!

Quantas noites passei,
deliciado, numa volta do rio,
com uma donzela cuja pulseira
imitava a curva da corrente!

E servia-me vinho do seu olhar,
e o vinho do jarro,
e outras vezes o vinho da sua boca.
Assim passava o tempo!

Feridas pelo plectro,
as cordas do seu alaúde faziam-me estremecer,
e era como se ouvisse a melodia das espadas
nos tendões dos inimigos…

Ao despir o manto descobria o corpo,
florescente ramo de salgueiro,
como o capulho se abre
ao exibir a flor…

 

 

Rutebeuf e os dilemas da miséria.

Nascido em pleno pesadelo medieval, autor maduro aos 15 anos e corpo cadáver aos quarenta, Rutebeuf sofreu a vida inteira de miséria crónica e anonimato agudo. Isto, claro está, apesar de ter sido ele que praticamente inaugurou a dramaturgia francesa. Não admira pois que encontremos frequentemente nos seus versos os lamentos prolixos, as queixas de má sorte e algumas frágeis e vãs tentativas de conformismo.

Na sua lírica de jogral vagabundo, pungente e sincera, denuncia a fealdade e a brutal natureza da sua mulher, a abstinência financeira, as dificuldades criativas, as falhas de memória, o flagelo da velhice (na agreste Europa do Século XIII, as alminhas caducavam mais cedo). No famoso “Complainte de Rutebeuf”, o poeta partilha com o leitor uma interminável lista de complicações existenciais, penitências do destino, desagravos intestinais, agruras de espírito e penas de amor (um amor sublimado e platónico, bem dentro do imaginário da época).

Valente inimigo do triste papa Alexandre VI e da Inquisição francesa, grandessíssimo campeão da Universidade de Paris, autor fundamental na génese da francofonia, peregrino druida do teatro místico europeu, satírico empedernido e competentíssimo trovador, Rutebeuf – o pobre – deixa afinal à posteridade uma herança opulenta:

 

O JOGO DO INVERNO

Contra o tempo em que as árvores se desfolham
e nos ramos não há nenhuma folha
que não caia por terra;
contra a grande pobreza que me aterra
e que de toda a parte me faz guerra;
Contra o tempo do Inverno
que até me altera o tom dos próprios versos,
começo por caminhos bem diversos
a narrar esta história.
Pobre de senso e pobre de memória,
foi como Deus me quis, pra sua glória…
E quanto a rendimentos
apenas me entregou todos os ventos
que sopram e me gelam neste tempo…

Pobreza foi somente a sua oferta;
e nem tenho outra porta sempre aberta…
Mas no fundo sou rico,
pois Deus me dá o tempo que é preciso;
assim, durante o Verão lá vou cantando,
como a ave no ramo,
e depois, no Inverno, se choro e me lamento,
tenho por companheiro o próprio vento…
De que mais necessito?

 

 

Marcabru e a alergia ao amor romântico.

Um dos primeiros trovadores cujos versos chegaram aos tempos modernos, Marcabru tem um perfil biográfico escasso e contraditório. Gascão, viveu apenas 20 breves anos (1130-1150), mas ainda assim foi prolixo já que lhe sobreviveram 44 poemas, que oscilam entre a crítica social e a mais desavergonhada obscenidade.

Nas três pequenas cantigas cuja tradução de DMF se trancrevem, Marcabru traça um quadro negro do amor romântico em particular e das mulheres em geral. Talvez por ter sido, ao serviço de Afonso Jordão, Conde de Toulouse, um propagandista das guerra da Reconquista na Península Ibérica, o trovador chega ao ponto de comparar negativamente o amor com a guerra. Considerando a sua efémera existência e acreditando nestas breves trovas, Marcabru terá morrido virgem. E feliz por isso.

 

AUTO-RETRATO

Marcabru, cuja mãe Marcabrua
engendrou sob a luz de uma lua
que lhe deu do amor este fado:
não sentir nunca amor por nenhuma,
de nenhuma ser amado.

 

DAS MULHERES

São pior’s do que eu possa dizer:
no buraco só querem meter
quem capaz se mostrar de as encher.
Não se ‘scute por Deus nenhum rogo
dos que queiram honrar e servir
essas putas de peitos em fogo!

 

DO AMOR

Nem a fome, nem peste nem guerra
Tanto mal já causaram na terra.

 

 

Guilherme de Poiters entre a conquista normanda e a fornicação maratonista.

O Casal Mal Unido . Albert Dürer. 1495 . Detalhe

Guilherme de Poiters (1020-1090) foi um sacerdote francês de origem normanda, ao serviço do duque Guilherme, o Conquistador. A narração em verso da conquista normanda da Inglaterra, “Gesta Guillelmi ducis Normannorum et regis Anglorum” (“Os Feitos de Guilherme, Duque de Normandia e Rei da Inglaterra”)”, transportou-o para a posteridade, apesar de, desgraçadamente, nenhum exemplar desta epopeia ter sobrevivido ao passar dos séculos.

Dos textos da sua autoria que sobreviveram, há uma profana (é dizer pouco) cantiga que relata a épica orgia de 8 dias que o capelão experimentou depois de, nos campos de Auvergne, ter encontrado duas mulheres casadas… Mesmo que o relato seja fictício, parece que a corte Normanda do século XI era um sítio de assinalável liberdade de costumes, que permitia a um padre da Igreja Católica Apostólica Romana versejar impudicamente sobre o adúltero exercício de fornicação desenfreada.

David Mouurão Ferreira deve-se ter divertido deveras a verter para Português este extenso e muy brejeiro poema, de que ficam aqui as primeiras e as últimas quatro sextilhas.

 

NOS CAMPOS DE AUVERGNE, ALÉM LIMOSINO

Nos Campos de Auvergne, Além Limosino
caminhava só, pelo meu caminho,
topei a mulher de Dom Guarino
e a de dom Bernardo
muito afavelmente ambas me saudaram
por São Leonardo.

Uma então disse lá no seu latino
“Proteja-vos Deus, senhor peregrino!
Tendes aparência de moço bem fino
e muito educado.
Mas posso enganar-me: o que há mais é loucos
por todos os lados.”

Sabeis que resposta é que lhes compus?
Não lhes disse chus, muito menos bus,
nem ferro nem fuste. Apenas, de truz,
retorqui então:
“Bebabariol, bebabariol
Bebabarião.”

Disse Dona Inês para Dona armanda:
“Cá temos o homem que andamos buscando.
Por amor de Deus, irmã, não o ‘spantes,
que ele é mesmo mudo.
Connosco fará o que nós quisermos
e há-de calar tudo.”

(…)

Quando já eu tinha bebido e manjado,
por ordem das duas fiquei desnudado:
puseram-me então o gato malvado
em cima do pêlo;
do alto da espinha até ao artelho
fizeram corrê-lo…

Seguro p’la cauda Inês o mantém.
Feridas suporto bem mais do que cem.
Das garras do gato sai-me ninguém
por aquela vez.
Mas não disse nada: o quer que dissesse
seria morrer…

“Irmâ”, diz Inês para Dona Armanda
“Que é mudo já temos a prova bastante.
Irmâ, preparemos para ele um banho,
chega de transtorno!”
E por oito dias eu permaneci
dentro desse forno.

Tanto as forniquei como haveis de ouvir:
cento e oitenta vezers, mais oito a seguir.
Na fornicação as bragas rompi
mais o meu arnês.
Nem vos seu dizer qual foi o dano
que o caso me fez.

Mal vos sei dizer qual foi o dano
que o caso me fez.