“Encobre o teu Céu ò Zeus
com nebuloso véu e,
semelhante ao jovem que gosta
de recolher cardos
retira-te para os altos do carvalho erecto
Mas deixa que eu desfrute a Terra,
que é minha, tanto quanto esta cabana
que habito e que não é obra tua
e também minha lareira que,
quando arde, sua labareda me doura.
Tu me invejas!”Johann Wolfgang von Goethe . Prometeu . 1774
Se bem que constitua um legado literário prolixo e de endémica influência no imaginário ético, estético e metafísico do Ocidente, o mito criacionista dos gregos, como a grande parte dos mitos criacionistas, é uma história que padece de disfunções na narrativa, típicas da tradição oral, e que é absolutamente destituída de bom senso e bom gosto, mesmo considerando que se trata de uma rábula com uns valentes milhares de anos.
Senão vejamos:
No princípio não era o verbo; era o caos. A matéria universal apresentava um aspecto assim para o desagradável, as sementes das coisas por vir boiavam em confusa promiscuidade no pestilento pântano primordial, sendo que a terra não era terra, o mar não era mar e o ar, absolutamente irrespirável. É claro que este estado de coisas não podia perpetuar-se e os deuses intervieram finalmente, separando a terra do mar e o céu de ambos.
Um dos deuses (não que se saiba exactamente qual, nem precisamente porquê) decidiu elaborar sobre a Obra e atribuiu aos rios e lagos os seus lugares, levantou montanhas, esgravatou vales, plantou os bosques, rompeu as fontes, lavrou os campos férteis e as áridas planícies, permitindo que os peixes tomassem a devida posse do mar, que as aves se assenhoreassem do ar e que os quadrúpedes herdassem a terra.
Feito isto, alguém (outra incerteza) deu por falta de um animal sapiens, capaz de reinar sobre este tão-bem-arrumado-planeta-novinho-em-folha; um bicho mais esperto mas, por necessidade instrumental, ainda assim um imbecil quanto bastasse para ser capaz de venerar a desordenada, promiscua e sanguinolenta família residente no Olimpo. Ora é precisamente aqui que Prometeu, o nosso herói, entra em cena.
Filho de Jápeto e Clímene ou de Jápeto e Ásia ou talvez de Jápeto e Têrmis (de novo a dúvida), Prometeu pertencia à estirpe dos Titãs, gigantescos e truculentos semi-deuses, descendentes de Urano e Gaia e inimigos fervorosos dos deuses olímpicos. Apesar da animosidade, Prometeu e o seu desastrado irmão Epimeteu receberam de Zeus (ou de Cronos, a questão não é definitiva), a feliz incumbência de conceber e concretizar o homem. Epitemeu, porém, desperdiçou os seus talentos a caracterizar os outros animais da terra, tarefa tão trabalhosa e criativa como dar carapaças às tartarugas, mamilos aos mamíferos, veneno aos escorpiões, penas aos pássaros, dentes aos tubarões e sabor à carne do porco.
É claro que, quando chegou a hora de atribuir super poderes ao bicho homem, Epimeteu estava de rastos. Prometeu, cuja primeira tarefa era apenas a de controle de qualidade sobre o trabalho do irmão (o prudente conceito da gestão contemporânea é quase tão antigo como o defecar de cócoras), acabou por se ver a mãos com o trabalho propriamente dito e, muito prosaico, toma um punhado de terra, mistura-a com água, e do barro que surge faz o homem à semelhança dos deuses. Deu-lhe o porte erecto, de maneira que, por oposição aos animais que têm o rosto voltado para a terra, o homem levante a cabeça para o céu e olhe as estrelas (leia-se: deu-lhe a capacidade da abstração metafísica).
Mas a tarefa não estava por ali concluída. Ao animal recém-criado faltava ainda a chama do livre arbítrio. À revelia dos deuses, que estavam já completamente satisfeitos com o produto (um frankestein com volição mística mas sem auto-determinação), Prometeu decide subir ao céu e acender a sua tocha no sol – lamparina sagrada e proibida, propriedade de Zeus – para trazer o fogo ao homem. Com esse divino dom, este assegura a sua superioridade sobre todos os outros animais. O fogo permite-lhe forjar as armas com que subjuga as feras e as alfaias com que cultiva a terra, permite-lhe cozinhar a caça e aquecer a moradia, de maneira a tornar-se relativamente independente do clima e, ainda por cima, a manipulação térmica possibilita a cunhagem da moeda!
Tomando conhecimento do crime de Prometeu, Zeus encoleriza-se (como é sabido, a cólera de Zeus não era tão parcimoniosa como a de Aquiles), e decide, em primeira instância, castigar a inocente raça dos homens (que não tinham culpa nenhuma de acto de Prometeu) desta curiosa maneira: com a colaboração dos restantes sócios divinos inventa Pandora, a mulher primeira, e envia-a por correio olímpico para casa de Epimeteu, que, contra os avisados conselhos do irmão, a aceita de bom grado, juntamente com uma estranha caixa que a bela criatura trazia a tiracolo. O problema é que, uma vez aberta, a caixinha revelou-se um verdadeiro holocausto pan-biológico, dispersando a doença e o ódio pela existência humana e sobre as gerações.
Não satisfeito com a desfeita, talvez presumindo que a invenção da mulher, apesar de tudo, seria mais um presente formidável do que um castigo terrível e constatando que o ladrão não tinha sido ainda e afinal devidamente castigado, Zeus ordena a Hefesto (o Neptuno de van Baburen, representado em baixo), que aprisione Prometeu e o vá acorrentar a um rochedo no cimo do monte Cáucaso, onde todos os dias uma águia (na verdade um abutre) lá iria debicar-lhe o fígado.
Bem vistas as coisas, a determinação régia é um recordista exercício de sadismo: Prometeu era um titã imortal, pelo que, por muito roído que fosse, o seu fígado voltava invariavelmente a regenerar-se. Acontece que a intenção era a de deixar o desgraçado neste suplício durante 30.000 anos, sem direito a redução de pena por bom comportamento.
Sendo de carácter literário, a história não podia acabar assim. Eventualmente, Prometeu é libertado por Héracles (Hércules, para os latinos), que havendo concluído os seus doze aventurosos trabalhos, padecia deveras da carência de adrenalina (eis, muito provavelmente, o primeiro Junkie da história das dependências).
A surpreendente ideia de que a mulher é criada como veículo de punição do homem, o aparente amadorismo com que o universo, a Terra e os seres vivos são construídos, a assumpção de que a liberdade de espírito vai contra a vontade dos deuses, as contradições e insuficiências da narrativa e os seus eminentes contornos pitorescos, que se alargam entre a inventiva gótica e o conto infantil, não impediram porém que o criacionismo grego fornecesse prolixa inspiração a muitos dos grandes génios da literatura e das artes plásticas.
A história foi popularizada por Hesíodo e teatralizada pela primeira vez por Ésquilo, no século V A.C., com o título de Prometeus Desmotes (Prometeu Agrilhoado) e, na Idade Média, veio muito a propósito dos desgraçados que iam parar à fogueira. Talvez por isso, o Romantismo acabou por formatar um universo simbólico co-relacionado, em que Prometeu assume a forma humana e representa a sede de conhecimento, e a sua captura do fogo proibido, a audácia e a generosidade humanas que permitem a partilha do saber, mesmo quando entidades plenipotenciárias e de mau génio o interditam.
No seu belíssimo “Prometheus”, um curto e eloquente poema de 8 estrofes, Goethe descreve um homem extraordinário, que se nega a venerar deuses ou a ser submisso. A partir de então a imagem de Prometeu na cultura ocidental é a de um género de Che Guevara do Mediterrâneo Clássico, que luta contra a repressão das massas e a mordaça dos poderosos. Por estas e por outras é que Karl Marx considerava Prometeu o seu herói favorito.
Conclusão: não deixa de ser divertido pensar que o paradigma criacionista da civilização fundadora do Ocidente é interpretada por um gigantone rebelde actuando por sua conta e risco; e que os triunfos tecnológicos, científicos e filosóficos da humanidade têm como origem mítica, não a vontade dos deuses, mas um obstinado e libertário free-lancer, dotado de um esquema moral que é, na sua essência, herético. Esta contradição entre a fé incondicional e o livre arbítrio da razão individual sobra abundantemente pela história a dentro e, por muito mal editada que seja a novela, a verdade é que, como sempre, os gregos contaram primeiro todas as histórias que no decorrer das eras posteriores vieram a ser (re)contadas.
Prometeu, o bom bandido de Protágoras, de Ésquilo, de Platão, de Rousseau, de Mary Shelley, o paladino da revolução de Descartes e, provavelmente, o único santo de Bachelard; Prometeu, o pirata do fogo sagrado, arde ainda, de verdade, na nossa lógica de todos os dias. Mais bicada menos bicada.
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