Revisitando uma edição tripartida da revista Colóquio Letras – de 2004, números 163 a 165 – que traz à estampa o trabalho de tradução que David Mourão-Ferreira desenvolveu sobre a poesia europeia.

 

 

Aristófanes e os prazeres da paz.

Considerado o mais brilhante autor de comédias da literatura grega, Aristófanes (sec IV A.C.) era um erudito conservador, apesar do uso de uma linguagem muitas vezes obscena e escatológica, que transformou o teatro grego num palco de intervenção política e social. Feroz adversário da Democracia de Sócrates e Eurípedes, acaba no entanto por ser vítima da censura imposta pelo despotismo aristocrático, consequente ao desfecho desfavorável para Atenas da Guerra do Peloponeso.

Talvez por isso, desenvolve um discurso pacifista absolutamente delicioso, que evita as banalidades filosóficas humanitárias, assumindo a preferência pelos prazeres epicuristas decorrentes do lazer: a guerra é uma chatice que impede o homem de preguiçar deveras, comer bem e fornicar bastante.

Dois exemplos magníficos da veia deste comediante/dramaturgo/poeta, que David Mourão-Ferreira decidiu em boa hora verter para Português:

 

HINO AO FALO

“Ó compincha, do vinho bom amigo,
Ó conviva das noites de folia,
Sedutor de mulheres e rapazinhos!
Depois de cinco anos de serviço,
aqui estou a saudar-te. Que alegria!

Eis-me já de regresso ao domicílio.
às malvas atirei, mais às urtigas,
aquilo de que fiz meu compromisso,
A paz, bem vês, assinei-a sozinho.
E os que fazem a guerra, que se lixem!

Quanto a mim, ó compincha, o que prefiro
é encontrar no bosque uma mocinha
– ou antes: surpreendê-la no delito
de lenha rapinar aos meus domínios –
e prendê-la, despi-la, possuí-la! (…)”

 

ELOGIO DA PAZ

“Que alegria! Oh, que alegria
do capacete estar livre,
dos feijões e das cebolas!
Batalhar não é comigo.
Prefiro, ao canto do fogo,
de parola co’os amigos,
garrafas ir esvaziando,
(…)
não sem ir aproveitando
– se por sorte, distraída,
minha mulher ‘stá no banho -,
pra me pôr na criadita!”

 

 

Catulo, Opsitila, Lésbia e o marido dela.

Gaio Valério Catulo (84 A.C.- 55 A.C.) foi um dos mais influentes poetas romanos do seu tempo e por muitas e saborosas razões. Vanguardista convicto, teve a coragem de mandar às urtigas o cânone homérico, trazendo para a poética as coisas mais pequenas e saborosas da vida quotidiana. Nada de telenovelas divinas ou da improvável glória dos guerreiros facínoras, maiores que a própria vida: a verdade é não haver heróis que se aguentem às dificuldades comezinhas do dia-a-dia, nem força na multidão que transcenda o egotismo, e a poesia do que precisa é da humanidade corriqueira, do individualismo e da pilhéria, da contestação e do escândalo. Em vez do sal épico, a pimenta erótica. Por oposição ao formalismo estético, a diatribe lírica.

David Mourão Ferreira escolhe 3 obras deliciosas que reflectem bem o espírito desta romanesca figura, imparável beijoqueiro e valente fornicador. Lésbia, personagem que inspirou frequentemente o libido e a veia do poeta, será muito provavelmente a mulher de um infame contemporâneo (Cláudio Pulcher), embora o seu nome decorra da alusão à poetisa Sappho de Lesbos (séc. VII A.C.). Sobre Ipsitila, não abundam referências, mas perante a natureza do Convite, é ajuizado deixar que a memória da musa permaneça no anonimato. Eis portanto Catulo, o menino terrível da Grande Alcova do Império Romano.

 

CONVITE A IPSITILA

Como eu queria, ò doce Ipsitila,
que me fazes arder, delícia amada,
fazer contigo a sesta neste dia!
Se te apetece o mesmo, se te agrada,
a porta deixa então só encostada…
E não saias de casa. E me convida…
Prometo que serás bem fornicada
ao todo nove vezes de seguida!

 

A LÉSBIA

Vivamos, Lésbia, amando,
e que não nos perturbe
o cansado murmúrio
de quem envelheceu.
Podem morrer, nascer
seguidamente os sóis:
a nós porém, assim
que a breve luz nos foge,
logo nos é forçoso
dormir a inteira noite.
Beija-me cem, mil vezes,
inda mais cem, mais mil,
agora mil, e cem…
Depois, quando fizermos
tantos milhares que nem
os possamos contar,
baralhemos a conta,
para evitar que alguém,
sabendo o número exacto,
nos venha a invejar.

 

AO MARIDO DE LÉSBIA

Se Lésbia me difama em frente do marido,
eis logo o imbecil no auge da alegria!
Pois não entendes, burro? O silêncio, o olvido
seriam bem melhor… E se ela me injuria
é não só por se recordar ainda
mas porque no seu peito a chama não se extingue!

 

 

Horácio e a vitamina do dia.

Ilustre bardo da antiguidade clássica, Quinto Horácio Flaco (65 A.C – 8 A.C.) é célebre pelo que deu à lírica, tanto em versos como em conselhos. Uns e outros produto pródigo de um talento imenso e de uma existência atribulada.

Na convulsão política e militar que decorre do assassinato de Júlio César, Horácio decide desgraçadamente alistar-se nas fileiras de Brutus, uma tropa de improvisos, condenada pela providência a ser esmagada por Augusto, que se apressa a deportar o infeliz. Perdoado pelo estado mas castigado pelos deuses, regressa a Roma para encontrar o pai morto e a propriedade confiscada. Reduzido à miséria conhece Virgílio e depois – algo mais importante – ganha a amizade de Mecenas, generoso aristocrata que financiará as suas notáveis Odes, Sátiras e Epístolas.

Talvez por tudo isto – ou nem por isso – David Mourão Ferreira escolhe a magnífica e imortal Ode a Leucónoe, um elogio da existência como uma experiência intensa e despreocupada do momento presente. Por razões que podemos adivinhar facilmente, Horácio apela à sua ninfa para que se deixe arrebatar pela vertigem de um imediatismo hedonista. O futuro aos deuses pertence e nem vale a pena frequentar oráculos: se o que temos é o aqui e o agora, o melhor é aproveitar. Não há maneira de saber se Horácio inventou este irresponsavelmente lindo paradigma (a Epicuro devem estar reservados os direitos de autor), mas pelo menos tem o mérito de ser o primeiro a lançá-lo para a combustão da poesia. Eis, pois, nas suas próprias e eternas palavras, um conselho que, afinal, já todos seguimos um dia.

 

CARPE DIEM
Ode a Leucónoe

Não procures, Leucónoe – Ímpio será sabê-lo -,
que fim a nós os dois os deuses destinaram;
Não consultes sequer os números babilónicos:
melhor é aceitar! E venha o que vier!
Quer Júpiter te dê inda muitos Invernos,
quer seja o derradeiro este que ora desfaz
nos rochedos hostis ondas do mar Tirreno,
vive com sensatez destilando o teu vinho
e, como a vida é breve, encurta a longa espr’ança.
De inveja o tempo voa enquanto nós falamos:
trata pois de colher o dia, o dia de hoje,
Que nunca o de amanhã merece confiança.

 

 

Juvenal e as queixas de Roma.

É realmente uma pena, mas sabe-se muito pouco sobre a vida de Decimus Lunius Luvenalis, o mais indignado e moralista dos poetas satíricos da história do Império Romano. Nascido no primeiro e morrido no segundo século da era cristã, Juvenal deixa à posteridade um vasto discorrer de protestos, críticas, censuras, lamentos, vitupérios, acusações, conselhos, imperativos categóricos, grandes máximas de tom paternalista e algumas saídas de génio proverbial, entre as quais a célebre equação retórica “Quis custodiet ipsos custodes?” (Quem guarda os guardiões?), a propósito da inutilidade de usar eunucos para guardar as mulheres dos nobres. A expressão “panem et circenses” (pão e circo) – utilizada para definir os instintos primários da populaça – é também da sua pertinaz autoria.

Juvenal viveu numa Roma mal criada, indigesta, perigosa e barulhenta; uma Roma pobre e imunda e caótica, emaranhado de ruas estreitas, calçadas esburacadas, telhados periclitantes e engarrafamentos de carroças; a rebentar pelas costuras de bêbados e bandidos, de prostitutas e soldados, de escravos insolentes e fidalgos avarentos e senadores corruptos e matronas promiscuas. De tudo isto, muito se queixa o autor, nas 16 sátiras que sobreviveram às eras. Davida Mourão Ferreira escolheu traduzir precisamente alguns fragmentos bem elucidativos do tom choroso, embora contestatário, hipocondríaco mas sardónico, do grande poeta.

Eis alguns excertos do livro de reclamações de Juvenal, uma eloquente vítima da barbárie romana.

 

SÁTIRAS 3

Não faz falta a inspiração:
a indignação agora forja os versos.

O que a pobreza tem afinal de mais duro:
dar a qualquer pessoa um aspecto ridículo.

Morre-se aqui de insónia. E fica-se doente
com as más digestões, que nos deixam o estômago
em acidez ardendo… Onde encontrar um sítio
propício para o sono? É que só os mais ricos
poderão afinal dormir nesta cidade.
E é isto que nos mata. E que dizer do aperto
p’los carros provocados em as ruas estreitas,
do rebanho ruidoso e que não mais avança,
capazes de acordar mesmo aqueles que sofrem
da doença do sono? Apenas quem é rico
é que pode sem custo, em liteira fechada,
aí ler, e escrever, e dormir à vontade,
chegar aonde quer antes de toda a gente…
Nós, que vamos a pé, temos que suportar
a torrente de quem caminha à nossa frente
e a torrente de quem nos empurra p’las costas:
aqui, um cotovelo; ali, uma fasquia;
este me dá c’um pau, aquele com um vaso;
e tenho as pernas já salpicadas de lama;
e ora esmagado o pé por uma sapatorra,
ora fendido o pé p’lo ferro de um soldado!

Agora considera outra ordem de p’rigos
aos quais principalmente a noite nos expõe:
se uma telha cair destes altos telhados,
em que estado nos deixa o crânio, em que estado!

 

SÁTIRAS 5

Quando a casa é maior, Mais insolente o escravo.
Repara nesse, aí que a resmungar te impinge
um duríssimo pão, de miolo empastado,
que sabe já a mofo e a teus dentes resiste!
Do alvo como a neve, inda por cima fofo,
só o dono da casa é que pode ingeri-lo…
E não penses sequer que vais tomar-lhe o gosto.
Retira lá as mãos! Refreia o apetite.

 

SÁTIRAS 6

Há que um risco sofrer por uma justa causa?
Geladas de pavor ficam logo as mulheres…
Só pra desonrar é que mostram audácia,
pois não há nada, então, que as faça estremecer.

Enjoam no alto mar, tudo lhes causa náusea,
se têm que embarcar por ordem dos maridos…
Co’os amantes, porém, fazem boa viagem,
e tudo lhes agrada a bordo dos navios…

 

 

Marcial e a má língua.

Nascido na Ibéria ao tempo insano de Calígula e chegado a Roma em pleno inferno de Nero, Marco Valério Marcial (86-103 D.C) testemunhou toda a demência ontológica inerente à época dos imperadores loucos, incluindo o grande incêndio, as orgias de sexo e morte, as intrigas da corte, os assassinatos políticos, o regabofe absoluto na moral e nos costumes, o descrédito dos rituais e das instituições e, claro está, o triunfo da má língua.

Poeta da calúnia, ácido comentador das fraquezas mundanas, Marcial é um sobrevivente: exibindo despreocupadamente flagrantes falhas de carácter, o poeta mostrou-se sempre servil e pressuroso para com os seus péssimos césares, mas apenas até ao momento da morte destes, altura em que tratava de lhes enxovalhar a memória. Mantendo-se cuidadosamente silencioso sob a poderosa protecção de Séneca, enquanto duraram os tempos bárbaros dos imperadores com atraso mental, inicia a publicação dos seus imortais Epigramas apenas com a subida ao poder de Tito Flávio e depois, de Domiciano, sumos pontífices de competências diferentes, embora igualmente tolerantes para com bobos e trovadores.

Marcial também não era reconhecido pelos seus escrúpulos: vivia literalmente à custa de patronos de quem dependia até no que se refere ao vestuário, traía frequentemente amizades e segredos pela pertinácia de um verso e não revelava qualquer vestígio de pudor ao escrever sobre a ausência de pelos púbicos de um nobre, os trajes de quarto de uma cortesã ou a impotência de um senador. Mais a mais, fazia questão de os referenciar, nos versos, pelos seus nomes próprios, num assomo temerário que é paradoxal, considerando a sua ínvia personalidade

Isto embora a infame reputação até poderá ser algo injusta, dado o contexto psico-social da época, mas a verdade estará com certeza no que nos deixa de literatura e essa é, em paralelo, ordinária e genial, vulgar e brilhante; formalmente perfeita (o epigrama é um género grego que exige altos recursos estilísticos e impõe um regime métrico de complexidade quântica) mas com virulentos ataques de mau gosto e de maus fígados.

David Mourão Ferreira respeita bem a memória polémica de Marcial e opta por traduzir precisamente alguns dos mais picantes e mal criados epigramas, onde porém se expressa em tom sublime o humor, o virtuosismo, o sensacionalismo colunista do pai de todos os poetas de escárnio e mal-dizer que a humanidade em boa hora soube parir.

Deixo-vos pois, com Marco Valério Marcial e o desvario estético do esgoto sociológico de Roma.

 

EPIGRAMAS . LIVRO I

Passam por teus os versos que recitas,
e que afinal são meus.
Tão mal, porém, tu os recitas
que passam a ser teus…

 

EPIGRAMAS . LIVRO II

Se depilas o peito, as pernas mais os braços,
se teu pénis também em torno é depilado,
é porque à tua amante assim melhor agradas…
Mas em quem pensas tu, ao depilar o rabo?

 

EPIGRAMAS . LIVRO III

“Não custa nada, não é nada”,
dizes-me sempre, Cina,
de cada vez que me fazes algum pedido…
Se não é nada Cina,
nada então te recuso, meu amigo.

 

EPIGRAMAS . LIVRO VII

Já sessenta anos tem o Orador Cascélio:
e já começa a dar vidas de ter talento…
Quando será, enfim, um orador a sério?

 

De seu membro viril ‘stá doente o teu escravo;
tu, Névolo, do rabo.
Adivinho não sou; mas presumo o que fazes.

 

Não te envio, Pontiliano, os livros meus,
para que tu, assim, me não envies os teus.

 

A Partos, a Germanos, a Dácios dás-te Célia;
nem os da Capadócia, ou Cilícia recusas;
vêem mesmo de Mênfis para te fornicar,
e os negros indianos, pelo Vermelho Mar;
aos judeus circuncisos tão-pouco o leito negas;
e à tua porta apeia-se o cavaleiro alano…

Então por que motivo, moça romana sendo,
só enfim não te agradam as piças dos romanos?