Galileo Galilei . Domenico Tintoretto . 1602-1607

 

“Dou graças infinitas a Deus, a quem agradou fazer-me o primeiro observador de coisas maravilhosas”
Galileu Galilei

 

Todos conhecemos de cor e salteado a lenda de Galileu: como um dos grandes astrónomos da história, enfrentou corajosamente a Inquisição em defesa de seu argumento de que a Terra orbitava o Sol, e não o contrário. Em variações recentes deste mito, a Igreja Católica foi colocada no papel de negadora da ciência, utilizando as Escrituras como um martelo pneumático para negar as alegações do astrónomo, acusando-o de heresia.

Parte realidade, parte ficção, esta história está bastante mal contada. Até porque as rábulas históricas que narramos num determinado momento nunca são realmente fieis ao que aconteceu no passado, porque são fundadas nos valores e nos credos da época em que são contadas. O mito de Galileu reflecte a forma como entendemos a História, a Ciência e a Igreja, agora.

Consideremos um personagem chave na história de Galileo Galilei: a grã-duquesa Cristina de Lorena. Descendente da família real francesa, era viúva do Grão-Duque Médici Fernando I da Toscana e mãe de Cosimo II, que governou o ducado na década de 1610. Galileu era natural da Toscana, e Fernando proporcionou-lhe o seu primeiro emprego como professor; ensinando matemática a Cosimo. Mais tarde, Cosimo fez de Galileu o filósofo e matemático oficial da sua corte.

Em dezembro de 1613, a grã-duquesa, uma mulher devota, perguntou ao amigo de Galileu, o monge beneditino Benedetto Castelli, sobre as estranhas coisas que Galileu havia descoberto com o seu telescópio e sobre a peregrina ideia de Nicolau Copérnico de que seria a Terra, não o sol, que se movia, conceito com que Galileu concordava publicamente. Para Cristina de Lorena isso parecia contrário a certos axiomas bíblicos. Castelli, embora intimidado pela perspectiva de ter que contrariar as convicções religiosas da grã-duquesa, defendeu educada e respeitosamente a ideia de uma Terra em movimento.

Sabemos isto porque Castelli descreveu a situação a Galileu, numa carta datada de 14 de dezembro de 1613. Galileu deu resposta a essa missiva uma semana depois, com uma longa carta endereçada a Cristina. Esse texto revela um articulado magistral sobre ciência e religião, e está repleto de belas tentativas de harmonizar a fé em Deus e as descobertas da inquirição humana:

“As Sagradas Escrituras e a natureza derivam igualmente da Palavra divina, a primeira como o ditado do Espírito Santo, a última como a execução obediente dos mandamentos do Criador.”

Isto embora Galileu não tivesse treino formal em teologia, nem estatuto eclesiástico para a ensinar. Talvez por isso, em 1615, a carta endereçada a Castelli tornou-se evidência material na queixa apresentada contra Galileu à Inquisição. A famosa história, que oscila entre a política, a religião e a vilania, tinha começado.

Mas seria Cristina, e outros como ela que rejeitaram as afirmações de Galileu, uma negadora da ciência? Na verdade, não é esse o caso.

 

Galileo Mostra ao Doge de Veneza Como Usar o Telescópio . Giuseppe Bertini . 1858

 

O facto dos corpos celestes orbitarem o sol não demonstra por si só o movimento da Terra.

É necessário sublinhar que Galileu respondeu a Cristina não por meio de argumentos científicos, mas fundamentando-se na Bíblia. Isto porque Cristina não discordava da ciência. Ela concedeu a Castelli que tudo o que Galileu descobrira era válido. Afinal, ainda em Abril de 1611, um conselho de astrónomos jesuítas havia verificado as descobertas de génio toscano, que demonstravam que Júpiter tinha luas em seu redor, que Vénus circulava à volta do sol e assim por diante.

O problema era que as luas de Júpiter ou o trânsito de Vénus não provavam em absoluto que a Terra se movia. Essas descobertas eram totalmente compatíveis com as ideias de Tycho Brahe, o astrónomo mais capaz e prestigiado da geração anterior. Brahe acreditava que o sol, a lua e as estrelas circunscreviam órbitas à volta de uma Terra imóvel, enquanto os restantes planetas descreviam círculos em torno do sol. Os sistemas de Brahe e Copérnico eram até muito semelhantes no que respeitava ao trânsito dos corpos celestes, com excepção da Terra.

Mas há um problema mais subtil na interpretação da história de Galileu como uma narrativa em que a igreja apostólica romana tenta obliterar os resultados do labor científico. Essa interpretação implica que a ciência tinha e tem uma visão do cosmos única, monolítica, baseada em factos imutáveis ​​que podem ser provados objectivamente e sobre os quais se constitui invariavelmente um uníssono. Essa interpretação é, claro está, errada. Brahe admirava Copérnico e o seu trabalho, embora tenha argumentado contra o astrónomo polaco. Fê-lo com base não na Bíblia, mas no que podemos reconhecer hoje como um conjunto de razões científicas convincentes.

 

Antes de Newton não se pode ser newtoniano.

A física da época, fundada na escolástica geocêntrica que provinha dos ensinamentos de Aristóteles, explicava os movimentos dos corpos celestes assumindo que eles eram constituídos por uma substância penta-essencial, um éter misterioso e leve, não encontrado na Terra, que naturalmente fluía nos céus, em círculos. Em contraste, as coisas terrenas eram pesadas e tendiam para o repouso. Não havia explicação física que justificasse que a Terra, um corpo pesado, se pudesse mover para sempre em redor do sol, vencendo a inércia. A gravidade e as primeiras leis do movimento e da termodinâmica só haviam de chegar com Newton, décadas mais tarde.

Um segundo argumento convincente para o sistema de Brahe era a dimensão e a localização das estrelas. Se a Terra estivesse em movimento, então o seu trânsito em relação às estrelas deveria ser detectado. O próprio Brahe observara estrelas com precisão notável e nenhum movimento havia observado. Assim sendo, ou a Terra não se movia, ou as estrelas estavam tão distantes que a órbita da Terra não faria qualquer diferença. Mas como determinar se a segunda hipótese era válida? Convém lembrar que só em 1925, através das observações e mensurações de Edwin Hubble é que percebemos que o Universo era constituído por miríades de galáxias e não apenas pela Via Láctea. Para um astrónomo do Século XVII, o cosmos como o entendemos hoje, imenso até ao ponto de ser incognoscível, seria impensável.

Mas ainda assim, os astrónomos da época achavam que o novo telescópio de Galileu poderia dar-lhes algumas respostas. Eles especulavam se poderiam medir os tamanhos aparentes das estrelas porque, como Galileu afirmou, o telescópio era capaz de “mostrar o disco da estrela nu e muitas vezes ampliado”. Supondo que essas estrelas fossem do mesmo tamanho dos planetas ou do sol, seria talvez possível calcular a distância a que ficavam da Terra.

O astrónomo alemão Simon Marius, medindo os discos que viu no seu telescópio, fez uma série de cálculos e acabou por subscrever o sistema de Brahe, não o de Copérnico. O mesmo fez o astrónomo jesuíta Christoph Scheiner. O problema era que ninguém na época entendia as subtilezas ópticas dos telescópios, que focavam de forma imperfeita, transformando os pontos de luz em objectos difusos e alterando-lhes a escala. Esses globos difusos era o que os astrónomos, incluindo Galileu, mediam. Uma válida compreensão técnica da óptica telescópica só seria alcançada no século XIX.

 

Galileo Galilei . Justus Sustermans . 1636

 

Equívocos e teimosias, ao sabor das marés.

Um terceiro argumento científico contra o movimento orbital da Terra era que um objeto em queda não deveria cair linearmente, mas deveria sofrer um desvio, mesmo que muito ligeiro, se a superfície em que caísse fizesse parte de um corpo em rotação. Esse pequeno efeito foi sugerido pela primeira vez por cientistas jesuítas da época de Galileu. Hoje, entende-se que a “Força inercial de Coriolis“, um conceito relativamente recente, é um factor chave nos padrões climáticos, por exemplo, mas os jesuítas, compreensivelmente incapazes de detectar o fenómeno, argumentaram que a sua ausência sugeria a imobilidade da Terra.

As cartas de Galileu a Castelli e Cristina diziam pouco àqueles que foram atraídos pelas ideias de Brahe, precisamente porque estas estavam mais de acordo com as evidências científicas da altura. Galileu forneceria um argumento para o movimento da Terra no ensaio de 1616, “Sobre as Marés”, revisto e incluso posteriormente no seu famoso livro de 1632 “Diálogo Sobre os Dois Principais Sistemas do Mundo”, que acabou por o levar ao tribunal da Inquisição.

Nesse “Diálogo”, Galileu afirma que o duplo movimento de rotação da Terra em torno de seu próprio eixo e da sua revolução em torno do Sol, projectava diariamente os oceanos para frente e para trás, gerando as marés. Mas esta ação por si só não poderia explicar as marés do Mediterrâneo, que ocorrem duas vezes por dia. Para isso, Galileu argumentou que os períodos de maré em diferentes geografias eram determinados por características locais que reflectiam a refracção das ondas dentro de cada bacia marinha específica.

No seu ensaio de 1616, Galileu afirmou que as marés do Oceano Atlântico observadas em Lisboa, ocorriam uma vez por dia, de acordo com sua teoria. Porém, em 1619, foi informado por Richard White que essa afirmação estava errada; as marés também acontecem duas vezes por dia em Lisboa. A informação lapidar deveria ter convencido Galileu de que a sua teoria era falsa. No entanto, em 1632, Galileu apresento-a de novo, com uma mudança fundamental: a omissão das marés atlânticas.

O argumento científico de Galileu era falacioso. A ciência da época — a evidência observável e o raciocínio teórico que melhor se adaptava a essas evidências  — iam contra o seu pensamento. E os seus adversários sabiam disso. Francesco Ingoli, um padre da Ordem dos Teatinos que desempenhou um papel decisivo na censura da igreja ao trabalho de Copérnico em 1616, o jesuíta Melchoir Inchofer, na rejeição dos “Diálogos” e o clérigo Zaccaria Pasqualigo, também envolvido nessa recusa, citaram o problema da dimensão das estrelas, o paradoxo da queda dos corpos e a questão dos períodos de maré nos seus argumentários. Assim, quando os representantes da Igreja, ou uma aristocrata, argumentavam contra Galileu, não estavam a negar a ciência. Eles acreditavam simplesmente que tinham a ciência do seu lado.

No entanto, como sabemos agora, estavam errados. Todos eles, incluindo Galileu.

 

Galileu Enfrenta a Inquisição Romana . Cristiano Banti . 1857

 

Da ignorância sobre a natureza da ciência ao desconhecimento da tradição académica da Igreja.

O que dá ao mito de Galileu a sua conotação infame é que, supostamente, relata um episódio em que a ciência e a verdade dos factos é obliterada pela igreja-toda-poderosa. Mas ninguém hoje entende o universo como Galileu o fazia. A Terra pode não ser o centro do universo, mas o sol também não o é. E o actual entendimento do universo nem um século tem, embora a física contemporânea, à semelhança do que acontecia há quatro séculos atrás, ainda insista em misteriosas e fluídas substâncias penta-essenciais, como a Matéria Negra e a Energia Negra. Quem sabe como será descrito o universo daqui a 100 ou 400 anos? Qualquer história de Galileu que termine com moralismos triunfantes não compreende a natureza da própria ciência.

Tanto mais que a aquisição de conhecimento fundada no método científico deve muito às igrejas cristãs: como o ContraCultura já demonstrou num artigo anterior sobre a dialéctica entre a fé e o saber, muitos dos grandes protagonistas da história da ciência estavam umbilicalmente ligados à igreja ou consideravam que a sua missão seria a de descortinar, no mundo natural, os desígnios divinos. Copérnico, por exemplo, era um clérigo católico. E nenhum ateu ia convencer Newton da inexistência de um deus criador. Durante séculos, a Igreja romana foi a primeira financiadora da actividade científica. Muitas vezes, foi a única. E é aliás por isso que muitos dos adversários de Galileu eram, para além de padres, cientistas profissionais.

Além disso, ao vitimizar o seu protagonista, a lenda desvaloriza as características que fizeram de Galileu um imortal: a visão ambiciosa; o instinto certeiro, a habilidade matemática, a prodigiosa veia dialéctica, o génio para comunicar ideias complexas a públicos leigos ou especializados.

Assim como devemos reconhecer que a ciência não é estática, nem infalível, nem funciona sem contradição, também se aconselha cautela ao retratar a igreja como se de uma entidade monocórdica e unicelular se tratasse. Na época de Galileu houve muitos clérigos (como Castelli) que o defendiam. De facto, um dos enigmas fascinantes de toda a história é que durante muitos anos pareceu que o Papa Urbano VIII, que acabaria por ser a força motriz por trás do julgamento de Galileu, era ele próprio um convicto apoiante da teoria heliocêntrica.

A verdadeira história de Galileu não é de todo uma história da igreja contra a ciência. Mas o julgamento do toscano, e a sua condenação, constituíram de facto uma terrível injustiça. Os historiadores debatem ainda as razões dessa vilania. Alguns culpam as personalidades envolvidas. Outros evocam as pressões políticas e económicas envolvendo a Santa Sé e a riqueza da família Médici, representada pela grã-duquesa Cristina. Há ainda quem inclua na intriga as consequências da Guerra dos Trinta Anos, que atingiu o seu auge durante o julgamento. Todas essas pressões eram reais. Mas nenhuma justifica um julgamento por heresia.

Os ensinamentos da História são úteis para o bom governo do presente e a melhor gestão do futuro. Mas porque as mentalidades, as tecnologias, os aparelhos morais e económicos, os credos e os modos diferem radicalmente através dos séculos, devemos ter cuidado com as novelas históricas que se encaixam lindamente nos estereótipos contemporâneos. Quando é esse o caso, as probabilidades apontam para que algo de profundamente errado esteja a infectar a fábula.